Uma sociedade tem o direito de julgar – e regular – os modos de viver e as tradições de outra? E quando esses costumes estão relacionados diretamente a temas de vida e de morte? Esta discussão está sendo travada no Congresso Nacional em relação aos índios da Amazônia. O debate, que gira em torno de um projeto de lei que pretende equiparar uma prática tradicional indígena ao infanticídio, está sendo acompanhado de perto por pesquisadores do Instituto de Natureza e Cultura (INC), unidade da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) na região do Alto Solimões.
A iniciativa monitora a tramitação do projeto de lei 1.057, de 2006, conhecido como lei Muwaji. O documento propõe a criminalização da prática indígena de abandonar recém-nascidos – por razões que incluem o nascimento de gêmeos, a preferência por um dos sexos e a existência de limitações físicas –, além de versar sobre abuso sexual, maus-tratos e outras ameaças à integridade das crianças em sociedades consideradas não tradicionais.
A estudante de antropologia do INC Ester Maia, responsável pela pesquisa, explica que o projeto equipara o abandono das crianças ao infanticídio, descrito pelo Código Penal brasileiro como o ato de matar o filho após o nascimento, sob a influência do estado puerperal (período de mudanças psíquicas e físicas que sucede o parto). “A iniciativa surgiu a partir de um caso que ganhou a mídia: uma criança indígena que foi ‘resgatada’ por missionários no Amazonas”, conta Maia. “Isso despertou o interesse de entidades defensoras dos direitos humanos e de grupos religiosos.”
Para Maia, o projeto aborda uma questão sensível, com muitos aspectos culturais que precisam ser avaliados. “Essas etnias indígenas têm outra concepção de vida e de pessoa; o status social só existe após o nascimento, quando o indivíduo é equiparado aos demais e passa a integrar o grupo”, explica. “O projeto de lei, por sua vez, parte de conceitos considerados universais e quer impô-los às sociedades indígenas.”
Uma das alternativas à prática, prevista no próprio projeto de lei, é a adoção das crianças. “Ele prevê a retirada provisória da criança e/ou dos seus genitores do convívio do grupo, sua instalação em abrigos e, caso a decisão pelo abandono persista, o encaminhamento da criança para adoção”, conta a antropóloga Flávia Cunha, orientadora da pesquisa. “Mas como será esse procedimento? Que condições serão oferecidas aos índios?”, questiona.
Já aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, o projeto está agora na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. O primeiro parecer, favorável ao projeto, afirma que “negar o direito à vida com base numa tradição cultural é inaceitável, independente da cultura do grupo”. O conteúdo do documento, no entanto, vem recebendo críticas por criminalizar os indígenas, renovar o preconceito contra essas populações e tratar de uma prática tradicional junto com outras situações de abuso infantil.
“A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) chegou a solicitar seu arquivamento, mas ele continuou tramitando por iniciativa da frente parlamentar evangélica”, conta Maia. Para os membros da ABA, a proposta de lei estaria generalizando uma prática numericamente irrelevante no país, sem registros seguros e que não é apontada como problema pelos índios ou pelas instituições que atuam no campo, dando margem a intervenções indiscriminadas, superficiais e preconceituosas.
Índios invisíveis
Enquanto os políticos debatem na capital federal, a distância da Amazônia dificulta a participação das populações da região na discussão. Segundo Cunha, em 2012, por exemplo, houve apenas uma audiência pública sobre o tema, realizada em Brasília.
“O projeto estabelece uma relação complicada ao querer impor um sistema normativo a práticas que precisam ser compreendidas em sua lógica própria”, defende ela, acrescentando que o processo de adoção, embora seja uma alternativa viável e já empregada em alguns casos no Brasil, também vai impor condições do nosso Código Civil aos índios.
“O principal problema é que notamos a ausência dos sujeitos que poderão ser mais afetados pela legislação: os índios e os profissionais de diferentes áreas, como saúde e antropologia, que atuam na região”, constata. Apesar de não prever punição para a mãe do recém-nascido, o projeto pretende criminalizar por omissão qualquer pessoa que conheça casos de crianças nessa situação de risco e não alerte as autoridades.
O estudo do INC mostra que a internet pode ser uma aliada para democratizar esse debate: todo o acompanhamento da tramitação é feito via rede e os pesquisadores avaliam, ainda, a repercussão da discussão na própria internet – em jornais on-line e nas páginas de organizações indígenas, religiosas e da sociedade civil.
Apesar de destacar que a análise por meio da internet pode não abranger todo o trabalho de organizações e associações envolvidas com o tema, Cunha ressalta que a avaliação desses conteúdos permite mapear os pontos de vista e os interesses envolvidos em cada lado da discussão.
“A internet é um campo fértil em produção e reprodução de sentidos e analisar o discurso disseminado na rede é de grande interesse”, avalia a antropóloga. “Esse trabalho permite apreender a correlação de forças ali expressas e identificar os atores que aparecem no debate, a forma como seus argumentos são construídos e de quais pressupostos eles se utilizam”, completa.
Por enquanto, a iniciativa do INC não envolve qualquer trabalho direto com as comunidades e lideranças indígenas locais, mas existe a possibilidade dessa interação no futuro. A equipe também pretende traçar um paralelo com a legislação correlata dos países vizinhos e buscar materiais de comunicação produzidos pelas organizações indígenas.
Além desse estudo, o mesmo grupo do INC desenvolve trabalhos semelhantes na área de direitos sexuais e reprodutivos relacionados a gênero, orientação sexual e etnicidade. Em um deles, a equipe acompanha a tramitação de um projeto de lei que propõe criminalizar a homofobia no Brasil (o PL 122/2006) e em outro analisa os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal referentes à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54, que questiona a ilegalidade da interrupção de gravidez em casos de anencefalia fetal.
Marcelo Garcia*
Ciência Hoje On-line
*O jornalista viajou a Benjamin Constant a convite da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa.