Um atlas público do cérebro

Imagine conhecer um cérebro por dentro e navegar pelas reentrâncias desse complexo órgão, podendo ampliar detalhes e estudar áreas específicas de seu interesse. Não, não é preciso imaginar; basta entrar na página virtual do Observatório do Cérebro, da Universidade da Califórnia, em San Diego (EUA), para ter uma prévia desse atlas cerebral on-line, que estará disponível gratuitamente para o público a partir de setembro deste ano.

O cérebro que poderá ser visualizado é o do norte-americano Henry Gustav Molaison (1926-2008), que se submeteu no verão de 1953 a uma cirurgia para tentar reduzir suas sucessivas crises de epilepsia. A intervenção melhorou as convulsões, mas provocou uma lesão no hipocampo que afetou definitivamente sua memória, ao ponto de ele não lembrar de nada de sua vida pregressa, nem mesmo dos pequenos atos que acabavam de acontecer. O caso de Henry é um clássico na história da neurologia.

Para construir o atlas cerebral, o órgão foi cortado em 240 finas fatias, arquivadas em lâminas no Observatório do Cérebro

Para construir o atlas cerebral, o órgão foi cortado em 240 finas fatias, arquivadas em lâminas no Observatório do Cérebro. “O processo requer muito cuidado, como o trabalho de um relojoeiro”, conta o neuroanatomista ítalo-americano Jacopo Annese, diretor do observatório. “Seria pouco prático enviar as lâminas para estudo de outros grupos de pesquisa em todo o mundo; por isso, tivemos a ideia de digitalizar a informação e disponibilizar esses dados. Mas é muito importante conservarmos os cortes originais, porque, no futuro, a resolução poderá ser ainda maior, levando a novas descobertas.”

Foram feitas imagens de ressonância magnética e de microscopia de cada corte em diferentes níveis de resolução, de modo que, quem for navegar pela página poderá visualizar o cérebro em três dimensões e fazer aproximações com o mouse, concentrando-se em uma área específica, para estudar o órgão em nível anatômico ou mesmo celular.

Veja abaixo uma demonstração em vídeo de como navegar no atlas

Em busca de doadores

O observatório agora está em busca de novos cérebros para estudo. “Muitas pessoas já doaram seus cérebros”, conta Annese. “O importante é que estamos fazendo imagens desses cérebros em ação – os pacientes se submetem a ressonâncias magnéticas a cada seis meses, de modo que podemos acompanhar possíveis mudanças que ocorram em longo prazo, comparando essas imagens. E, quando eles morrerem, seus cérebros poderão ser estudados ainda mais profundamente.”

Segundo o diretor do observatório, as comparações anatômicas ou em nível celular poderão ajudar a entender o que causou determinado dano ou lesão. “Isso é importante, sobretudo, em doenças degenerativas, como as de Alzheimer e Parkinson, porque, a partir dessa análise, talvez possamos identificar que fatores estão envolvidos no seu desenvolvimento”, sugere.

As comparações anatômicas ou em nível celular poderão ajudar a entender o que causou determinado dano cerebral

“Será possível ainda comparar cérebros saudáveis de irmãos e compreender, por exemplo, por que um é capaz de pintar bem e o outro não”, acrescenta. “É importante lembrar que as interconexões e as vias que o cérebro usa para fazer essas ligações são diferentes em cada pessoa, e os vários mapas cerebrais poderão nos ajudar a compreender melhor essas diferenças.”

O valor gasto desde que o cérebro é entregue no observatório até o fim de todo o processamento de imagens e dados é de aproximadamente 14 mil dólares. Alguns dos doadores de cérebros também colaboram com recursos para financiar as pesquisas.

Embora não haja dúvidas da relevância de essa nova ferramenta estar disponível não apenas para a comunidade científica como também para o público, Annese adverte que muitas das informações registradas hoje talvez só sejam importantes daqui a 100 anos. “O cérebro é como um livro e nós somos os editores desse livro”, resume.


Alicia Ivanissevich
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Ciência Hoje/ RJ

* A jornalista viajou a San Diego a convite do Instituto das Américas para participar do 9º Workshop Jack F. Ealy de Jornalismo Científico

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
A lesão que afetou definitivamente a memória do norte-americano Henry Gustav Molaison foi no hipocampo e não no hipotálamo, como havíamos escrito. (19/09/2012)