Uma cultura científica precisa de cientistas proativos

Uma parcela grande da população brasileira está interessada em ciência e tecnologia – dados de uma pesquisa recente sugerem que o percentual (65%) é equivalente à taxa de pessoas interessadas em esporte e cultura.

Essa demanda está sendo atendida pela cobertura de ciência da mídia nacional, em especial da televisão?

Uma parcela grande da população brasileira está interessada em ciência e tecnologia 

Para responder essa pergunta – e obter algumas pistas de como as questões científicas são tratadas –, meus colegas e eu avaliamos a cobertura do Jornal Nacional, o noticiário com a maior audiência no país, transmitido em horário nobre.

Um dos principais resultados é que a ciência claramente integra a pauta do telejornal brasileiro, ocupando cerca de 7% de seu tempo. O Jornal Nacional atinge milhões de pessoas: de 100 telespectadores que estão vendo TV durante a exibição do Jornal Nacional, 57 estão assistindo ao programa.

Isso é surpreendente se considerarmos que não há uma seção dedicada à ciência ou mesmo um jornalista científico trabalhando nos bastidores, selecionando e preparando as reportagens. A ciência é, simplesmente, parte da agenda de notícias, assim como a política e os esportes.

A ciência tende a ser menos prevalente no noticiário de TV de outros países em desenvolvimento. Mas o caso do Brasil levanta questões a serem debatidas – num país onde a produção científica tem crescido em ritmo acelerado.

Veja reportagem recente do Jornal Nacional sobre o tratamento de doenças nos ossos com células-tronco

Sabor nacional

A maioria das reportagens do telejornal brasileiro dá destaque a resultados de pesquisas e, o mais importante, de pesquisas nacionais. Essa é uma boa notícia – os meios de comunicação de massa podem contribuir de maneira fundamental para tornar a ciência nacional, ainda invisível em vários países em desenvolvimento, mais acessível ao público.

A maioria das reportagens do telejornal brasileiro dá destaque a resultados de pesquisas e, o mais importante, de pesquisas nacionais

O pouco destaque que a ciência nacional ganha na mídia é resultado de vários fatores, incluindo, por um lado, estratégias mais agressivas de relações públicas dos periódicos norte-americanos e europeus e, por outro lado, o pouco esforço dos jornalistas de países emergentes para acessar os periódicos nacionais.

Outra razão para a escassa presença da ciência nacional nos meios de comunicação de diversos países em desenvolvimento é o pouco valor que os cientistas dão aos veículos locais, preferindo falar com a mídia nacional ou internacional. Essa atitude por parte dos cientistas, destacada pela minha colega Bothina Osama, pode ser questionada pelos jornalistas de ciência que escolhem escrever em sua própria língua.

Voz dos cientistas

O estudo também mostrou que os pesquisadores (em vez dos periódicos, por exemplo) são a principal fonte das notícias. De fato, o telejornal brasileiro tem atribuído aos cientistas um papel de legitimidade – ainda que os cientistas não tenham mais a acrescentar sobre o assunto além daquilo que já foi dito na reportagem, suas declarações carregam peso significativo.

Por outro lado, a comunidade científica pode perder oportunidades de ter papéis-chave em matérias mais desafiadoras, como nas doenças emergentes – caso, por exemplo, da gripe H1N1.

Os cientistas poderiam ser mais proativos no sentido de procurar a mídia para falar, por exemplo, sobre a ciência por trás das doenças emergentes e sobre em que ela pode – e não pode – contribuir para a nossa capacidade de detectar e controlar tais doenças. Ao fazer isso, eles usariam a seu favor o fato de os jornalistas os terem em alta conta.

Voz feminina

De acordo com o estudo, cientistas mulheres representam a minoria (30% dos entrevistados) entre os cientistas ouvidos nas matérias do Jornal Nacional, proporção que provavelmente representa o cenário dos telejornais brasileiros em geral. Esses dados não coincidem com o mundo real, onde as mulheres respondem pela metade da comunidade científica brasileira.

No caso particular da questão de gênero – aspecto levado muito a sério pelo SciDev.Net –, os resultados destacam a importância de haver maior esforço para a veiculação de uma imagem mais precisa dos cientistas nos meios de comunicação.

Há uma crescente conscientização sobre a importância do gênero para a ciência e para o desenvolvimento. Por exemplo: de acordo com um recente relatório da ONU, “a contribuição feminina para o desenvolvimento em países do hemisfério Sul é substancial”. Seria, portanto, essencial usar “uma lente de gênero nas políticas de C,T&I para o alcance do desenvolvimento humano e da sustentabilidade ambiental”.

Mudando a agenda jornalística

Compreender melhor como os jornalistas cobrem a ciência pode ajudar a identificar áreas que podem ser trabalhadas em prol da melhor qualificação do jornalismo científico no Brasil e em outros países em desenvolvimento. Mas mudar a agenda jornalística é um processo de longo prazo.

Mudar a agenda jornalística é um processo de longo prazo

No entanto, o que alguns estudos têm mostrado é que tal mudança, ao menos em termos quantitativos, é possível.

Por exemplo: um estudo que analisou a cobertura científica de telejornais de cinco países europeus (França, Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido) indica que o número de e o tempo dedicado a matérias relacionadas à ciência têm crescido em comparação com a década passada.

Os dados do estudo brasileiro, mostrando um percentual relativamente elevado da cobertura de ciência, desafia claramente a ideia de que a ciência não faz parte do interesse dos jornalistas, dos meios de comunicação ou mesmo do público. E isso é algo de que o país pode se valer.

Ainda que os jornalistas precisem estar mais bem preparados para realizar a cobertura na área, uma mudança de cultura poderia ocorrer mais rapidamente se cientistas se envolvessem mais com a mídia – algo para o qual eles ainda não estão bem preparados, seja nos países emergentes, seja em outra parte qualquer do mundo.

Treinar cientistas para isso poderia melhorar a cobertura de ciência. Uma melhor compreensão de como os meios de comunicação funcionam também ajudaria.

Precisamos criar uma cultura científica que construa pontes mais sólidas entre ciência, mídia e público. Isso envolve desafiar a ideia de que os meios de comunicação não estão interessados em ciência e pressionar os cientistas para que adotem uma postura proativa no sentindo de tornar a ciência parte da agenda jornalística.

Este artigo foi inicialmente publicado, em inglês, no portal SciDev.Net. Leia a versão original


Luisa Massarani
Coordenadora regional do SciDev.Net/ América Latina e Caribe