Via de mão dupla

“O conhecimento se constrói principalmente no diálogo, que é enfrentamento e formação de consciência crítica.” Ao citar um dos pilares do pensamento do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997), de quem foi discípulo e amigo, o também educador José Pereira Peixoto Filho, da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação Universidade de Itaúna, defendeu que a ciência, assim como a educação, não pode ignorar os saberes tradicionais em seu método.

Em conferência na última quarta-feira (25/7), na 64ª Reunião Anual da SBPC, Peixoto Filho enfatizou que, segundo a visão de Freire, a construção do conhecimento deve partir sempre do olhar da população. “Em suas memórias, Newton fala que, ao elaborar a mecânica newtoniana, ele observava trabalhadores fazendo rodas de carroças”, ilustrou. “Também Mendel, ao formular sua obra monumental de genética, observava como os jardineiros plantavam as ervilhas.”

O educador ressaltou, no entanto, que essa proposta não significa ter como premissa que o conhecimento popular está sempre correto. “Ao contrário do que muitos pensam, Paulo Freire não dizia isso. Na verdade, o que ele dizia é que é preciso partir do conhecimento da população – principalmente dos pobres – e das elaborações que ela faz para solucionar seus problemas.”

“Ninguém produz nada sozinho; é necessário que o outro me questione”

Para Peixoto Filho, o diálogo com os saberes tradicionais deve ser entendimento como um enfrentamento de pensamento, que é capaz de trazer à luz novos dados. Segundo essa visão, o conhecimento é construído coletivamente. “Ninguém produz nada sozinho; é necessário que o outro me questione”, disse Peixoto Filho.

Esse “outro” seria a própria realidade, que é muito mais ampla do que o postulado nas teorias científicas. Por isso, uma das maiores virtudes do pesquisador seria a humildade diante da realidade. “É preciso que o cientista tenha um olhar mais generoso e menos arrogante nas suas observações, porque ali há conhecimentos construídos ao longo da história”, alertou. “Se não levarmos em conta a realidade, teremos um conhecimento não dialético.”

José Pereira Peixoto Filho
O educador José Pereira Peixoto Filho foi abordado por vários estudantes, que lotaram a sala onde ele fez sua conferência e fizeram questão de demonstrar a satisfação de conhecer um discípulo e amigo de Paulo Freire. (foto: Thaís Fernandes)

Conhecimento como direito fundamental

Por outro lado, esse processo dialético não pode, segundo Peixoto Filho, abandonar o conhecimento acumulado pela comunidade científica e apropriado por uma minoria. “A aproximação do mundo cientificamente estabelecido e do conhecimento letrado com os modos de vida das populações é o caminho necessário para a conquista de direitos fundamentais (por exemplo, saber ler e escrever) e de condições subjetivas de sobrevivência”, afirmou.

“A apropriação desse conhecimento, que dá poder a uma parte da população, também é fundamental para os pobres. Estamos falando de educação e ciência como direito humano”

Ele enfatizou que o conhecimento cientificamente elaborado deve estar disponível, porque é patrimônio da humanidade. “A apropriação desse conhecimento, que dá poder a uma parte da população, também é fundamental para os pobres. Estamos falando de educação e ciência como direito humano.”

Esse processo de democratização do saber acumulado passa pela educação, que segundo Paulo Freire, deve ser trabalhada a partir da cultura popular. “É preciso reconhecer a importância da cultura popular na história da humanidade, assim como é feito com qualquer artista, pensador ou cientista no campo das representações ditas mais sofisticadas”, destacou Peixoto Filho.

O educador reforçou a necessidade de se adotar uma visão não elitista, que encare a cultura como tudo aquilo que homens e mulheres fazem na luta pela sobrevivência humana. “A cultura é o elemento que nos une e nos faz pensar adiante.”

Para avançar nessa perspectiva de educação popular, seria fundamental, segundo Peixoto Filho, adotar uma visão de pedagogia que não seja a mera reprodução da cultura ocidental cristã, modelo bem estabelecido atualmente e que teve o mérito de sistematizar os conhecimentos lógicos para a humanidade.

O educador defendeu que a pedagogia leve em conta a noção de homem coletivo, produto das relações histórico-sociais. “Para que esse método exista e seja respeitado, ele deve ser lambuzado do cotidiano e da cultura dos alunos e de quem vai aplicá-lo”, afirmou. “E essa é uma tarefa que nós, professores, não podemos entregar a ninguém”, finalizou.

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line

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