Você já deve ter ouvido falar de gravações que prometem ensinar de inglês a russo enquanto a pessoa dorme. Na verdade, isso não é possível. Mas o que uma pesquisa recentemente publicada na Science mostra é que os sons que ouvimos ao dormir podem, sim, influenciar o processo de consolidação das nossas memórias, inclusive das lembranças do que aprendemos.
Para provar isso, cientistas de Northwestern University, nos Estados Unidos, selecionaram um grupo de 12 adultos para participar de um desafio de memória e depois tirar um cochilo. Na tela de um computador, foram mostradas aos participantes 50 imagens que apareciam separadamente em posições diferentes. Cada imagem vinha acompanhada de um som relacionado a ela. A figura de um gato estava associada a um miado, o relógio, a um tique-taque, a pipoca, a alguns estouros, e assim por diante.
Após assistirem a essa exibição, os participantes tinham que colocar as imagens no local em que originalmente apareciam na tela. A tarefa foi desempenhada duas vezes e, em seguida, cada pessoa foi convidada a tirar uma soneca em um quarto silencioso e escuro. Eletrodos foram colocados nas cabeças dos participantes para monitorar a atividade cerebral.
Quando todos já estavam em sono profundo, os pesquisadores tocaram 25 dos 50 sons ouvidos durante o desafio de memória. A soneca coletiva durou cerca de 80 minutos e, depois de despertos, os participantes – que não se lembravam de ouvir os sons enquanto dormiam – foram submetidos novamente ao teste.
O desempenho caiu em relação à primeira vez que realizaram a tarefa, mas quase todos lembraram das posições das imagens correspondentes aos sons que escutaram enquanto dormiam. A experiência foi repetida com outro grupo sem que os voluntários dormissem. O índice de erro desse grupo no segundo teste foi de 20%, enquanto o dos voluntários que ouviram os sons foi de apenas 5%.
“Nossos resultados mostram que as informações apresentadas durante o sono podem influenciar as lembranças que recuperamos depois de acordar,” diz o neurofisiologista responsável pela pesquisa, Ken Paller. Segundo ele, o experimento é mais uma evidência de que a memória é processada durante o estágio de sono profundo, também chamado de fase de ondas lentas.
“Estamos começando a ver que o sono profundo é a chave para o processamento de memória”, afirma Paller. A maioria dos pesquisadores da área acredita que, durante essa fase, nossas memórias são reativadas e, na fase seguinte do sono, chamada de REM (sigla em inglês para ‘movimento rápido dos olhos’), o cérebro organiza e fortalece a memória.
Consolidação da memória
O neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor-científico do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, ressalta que ambos os estágios do sono são importantes no processo de consolidação da memória. “No sono de ondas lentas, acontece uma recuperação de memória, mas de baixa intensidade”, explica. “Já no sono REM, a atividade é comparada à de quando estamos acordados: as memórias são reativadas eletrobiologicamente e transformadas em lembranças de longo prazo.”
O especialista brasileiro destaca que a pesquisa de Paller não apresenta resultados totalmente inéditos, pois ela replica outro estudo publicado na Science em 2007. O experimento original, feito por pesquisadores alemães, seguia os mesmos passos que a pesquisa atual, com a diferença de que foram usados odores no lugar dos sons. “A pesquisa não é uma completa novidade, mas o fato de ser um assunto muito importante faz com que sua replicação seja válida.”
Ribeiro acredita que a pesquisa norte-americana pode contribuir para novos estudos que relacionem o processo de consolidação da memória no sono com a melhoria de aprendizado. “Já é muito claro que existe uma reativação de memória durante o sono que está diretamente correlacionada com um melhor aprendizado.”
No entanto, isso não quer dizer que é possível aprender dormindo. Ken Paller explica que a experiência não sugeriu nenhum aprendizado de novas informações, mas apenas demonstrou que o sono reforça a memória do que já foi aprendido. Para quem sonha em instruir-se dormindo, o pesquisador deixa um recado: “O melhor é estudar acordado mesmo.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line