A centenária e misteriosa supercondutividade

A supercondutividade é um dos poucos fenômenos naturais – senão o único – a reunir virtualmente todas as facetas do desenvolvimento científico e tecnológico. Descobertas ocasionais, erros que conduzem a acertos, acertos ignorados que poderiam antecipar descobertas, promessas e realizações de aplicações tecnológicas, abandono relativo e interesse revigorado e, sobretudo, grandes desafios para sua explicação fazem parte da sua história.

A descrição do fenômeno dá a impressão de algo estonteantemente simples. Mede-se a resistência elétrica do material em função da temperatura. Quando esta decresce, o valor da resistência varia suavemente até que, em determinada temperatura, ele cai abruptamente a zero. A temperatura em que isso ocorre é conhecida como temperatura crítica (Tc) do material observado. Diz-se então que o material é supercondutor abaixo dessa temperatura.

A humanidade ainda não pôde utilizar a supercondutividade em muitas das suas tão sonhadas e plausíveis aplicações tecnológicas

Mas, no alvorecer de seu primeiro centenário, a supercondutividade permanece envolta em mistério e ainda não permitiu que a humanidade a utilizasse em muitas das suas tão sonhadas e plausíveis aplicações tecnológicas.

Como é usual acontecer com as grandes descobertas, a da supercondutividade resultou de um conjunto de eventos fortuitos conduzidos e observados por cientistas. No início do século passado, o físico holandês Heike Kamerlingh Onnes (1853-1926) dedicava-se à liquefação do hélio para obter temperaturas próximas do zero absoluto – ou zero grau Kelvin (0 K). Conseguiu a façanha em 1908, obtendo a temperatura de 4,2 K, o que lhe valeu o Prêmio Nobel de Física de 1913.

Aparato para liquefazer hélio
Aparato usado em 1908 pelo físico holandês Heike Kamerlingh Onnes para produzir hélio líquido e obter temperaturas próximas do zero absoluto. (foto: Rob Koopman/ CC BY-SA 2.0)

A motivação para a obtenção de temperaturas tão baixas era, principalmente, o estudo da resistência elétrica dos metais em função da temperatura. De acordo com o conhecimento da época, para levar adiante esses estudos seria preciso usar amostras metálicas de alta pureza. Mas purificar metais não era e continua não sendo uma tarefa fácil.

O físico holandês Gilles Holst (1886-1968), um dos colaboradores de Onnes, teve a ideia de usar mercúrio em vez de um metal. Por se tratar de um líquido, a purificação do mercúrio era uma tarefa banal. Então, no dia 8 de abril de 1911, eles colocaram um tubo capilar cheio de mercúrio no hélio líquido e mediram a resistência elétrica do material em função da temperatura: a 4,2 K, a resistência era tão pequena que não podia ser medida. Estava descoberta a ‘supracondução’, primeiro termo usado por Onnes para descrever o fenômeno.

Ironicamente, tudo poderia ter sido muito mais simples. Bastaria ter colocado um pedaço qualquer de chumbo, impuro que fosse, e observariam o fenômeno em temperatura por volta de 7,2 K. Mas apenas em 1913 eles fizeram o experimento com esse metal.

Entraves à pesquisa

As pesquisas com o novo fenômeno se arrastaram lentamente por muito tempo. Instalações que permitissem esse tipo de estudo eram quase um monopólio do grupo liderado por Onnes.

Além disso, havia outro incômodo na supercondutividade: o estado de resistência zero desaparecia quando a amostra era colocada nas proximidades de um campo magnético, por mais fraco que fosse esse campo.

Sabe-se hoje que a explicação para isso é que vários supercondutores descobertos naquela época eram metais elementares, muitos deles supercondutores do tipo I. Nesses metais, o estado supercondutor existe apenas em uma fina camada superficial e é facilmente destruído por campos magnéticos acima de determinado valor que penetram no material.

Passaram-se duas décadas até que a existência de supercondutividade em ligas metálicas fosse reconhecida. Era o nascimento dos supercondutores do tipo II, com temperaturas críticas maiores e estado supercondutor distribuído em grande volume da amostra, de modo que o material resistia mais à presença de campos magnéticos.

Depois da descoberta do efeito Meissner, o grande salto na pesquisa sobre supercondutividade foi a hoje famosa teoria BCS

Essa interação entre estado supercondutor e campo magnético foi bem investigada pelos físicos alemães Walther Meissner (1882-1974) e Robert Ochsenfeld (1901-1993), que, em 1933, descobriram o efeito Meissner, uma das principais assinaturas do estado supercondutor. O fenômeno está associado à capacidade que um material supercondutor tem de repelir as linhas de força de um campo magnético.

Depois da descoberta do efeito Meissner, o grande salto na pesquisa sobre supercondutividade ocorreu no final dos anos 1950, quando os físicos estadunidenses John Bardeen (1908-1991), Leon Cooper (1930-) e Robert Schrieffer (1931-) apresentaram a hoje famosa teoria BCS, que lhes valeu o Prêmio Nobel de Física de 1972. Um componente importante dessa teoria é a formação de pares de elétrons, os famosos pares de Cooper, responsáveis pela condução elétrica nos supercondutores.

Primeiras aplicações tecnológicas

Se a comunidade científica recebeu com grande entusiasmo a teoria BCS, não havia como esconder a frustração pela falta de aplicações tecnológicas da supercondutividade. Mas esse caminho foi pavimentado poucos anos depois, com a fabricação de fios supercondutores de Nb3Sn, NbZr e NbTi, que ainda hoje são usados nos equipamentos de ressonância magnética de laboratórios de pesquisa e de hospitais e nos eletroímãs do Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), por exemplo.

Eletroímãs do LHC
Os primeiros fios supercondutores, fabricados em meados do século 20, ainda hoje são usados em vários equipamentos, como os eletroímãs do LHC (na foto), o maior acelerador de partículas do mundo, localizado na Suíça. (foto: Rainer Hungershausen/ CC BY-NC-ND 2.0)

Ao mesmo tempo em que os pesquisadores experimentais avançavam na elaboração de supercondutores do tipo II, por volta de 1962, o físico teórico britânico Brian Josephson (1940-) previu a existência do efeito túnel em materiais supercondutores.

Esse fenômeno, já descrito na coluna de agosto de 2007, resultou na invenção do Squid (sigla em inglês para dispositivo supercondutor de interferência quântica). Trata-se de um sensor que permite realizar medidas magnéticas extremamente sensíveis e é usado atualmente em inúmeros equipamentos de pesquisa e em inovadores aparelhos clínicos de magnetoencefalograma, magnetocardiograma e ressonância magnética funcional.

Nos anos 1970, o avanço científico e tecnológico associado à supercondutividade era tão lento que muita gente foi se dedicar a outras áreas de pesquisa. A história mudou em meados de 1986, com a descoberta das cerâmicas supercondutoras, algumas das quais apresentando supercondutividade abaixo de 90 K.

Enquanto as cerâmicas supercondutoras não satisfazem completamente osonho dos engenheiros, os pesquisadores avançam na descoberta de novos compostos supercondutores

Encontrar um material supercondutor com temperatura crítica próxima da temperatura do nitrogênio líquido (77 K) foi um grande passo em direção ao sonho supremo da supercondutividade em temperatura ambiente (entre 294 e 296 K). Mas ninguém sabe se chegaremos lá. Na verdade, ainda estamos muito longe: o recorde atual, 138 K, pertence a um óxido à base de mercúrio, bário, cálcio e cobre.

Enquanto as cerâmicas supercondutoras não satisfazem completamente o sonho dos engenheiros, os pesquisadores da área de ciência dos materiais avançam na descoberta de compostos supercondutores, sendo o diboreto de magnésio (MgB2) o mais novo da família. Comparado com as cerâmicas, ele é medíocre em termos de temperatura crítica (39 K), mas seu estado supercondutor resiste a altíssimos campos magnéticos, o que o credencia para a indústria elétrica de alta potência.

Finalmente, uma leve ducha de água fria: a teoria BCS não é capaz de explicar a supercondutividade em muitos dos novos supercondutores. Mas isso não é de todo ruim, pois mostra que ainda há muito o que fazer. Quem se habilita?

Carlos Alberto dos Santos
Professor visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila)