Achado para não ser esquecido

No dia 1º de maio de 1823, a escritora inglesa Maria Graham (1785-1842), em uma de suas viagens ao Brasil, escreveu em seu diário:

“Vi hoje o Val Longo [Valongo]. É o mercado de escravos do Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de escravos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas, com as cabeças raspadas, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente.

Em alguns lugares, as pobres criaturas jazem sobre tapetes, evidentemente muito fracos para sentarem-se. Em uma casa, as portas estavam fechadas até meia altura e um grupo de rapazes e moças, que não pareciam ter mais de quinze anos, e alguns muito menos, debruçava-se sobre a meia porta e olhava a rua com faces curiosas. Eram evidentemente negros bem novos.”

Maria Graham (1785-1842)
Maria Graham retratada por seu marido. A escritora inglesa ficou chocada com a condição dos escravos no Brasil.

Assim como tantos outros viajantes que estiveram no Rio de Janeiro na primeira metade do século 19, Maria Graham estava chocada com o que via, mas a cena não era nenhuma novidade para os habitantes da cidade.

Desde 1770, quando o marquês do Lavradio ordenou a mudança do mercado de escravos das proximidades do Paço (hoje, Praça XV) para a rua do Valongo (atual rua Camerino), a região que hoje compreende os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo passou a abrigar, além do próprio mercado, um sem número de trapiches e casas de negociantes, onde os recém-chegados ficariam expostos à espera de seus futuros senhores.

Desses africanos, muitos eram crianças, capturadas quando o comércio de africanos já estava nos estertores: proibido no Brasil desde 1831 – ainda que essa interdição tenha sido largamente desobedecida – e condenado pela Inglaterra desde o início do século 19.

Os traficantes perceberam que seu negócio estava com os dias contados e, por isso, traziam quem conseguisse encontrar pela frente. Essas crianças muitas vezes nem resistiam às agruras da viagem e faleciam ao chegar ao Rio de Janeiro.

Costurando a história

Lembro disso por conta da recente descoberta das estruturas do cais do Valongo – e também do cais da Imperatriz, projetado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny (1776-1850) em 1843 para receber Teresa Cristina (1822-1889), que chegava ao Brasil para desposar D. Pedro II, imperador do Brasil – durante as obras de reforma da zona portuária do Rio de Janeiro.

Nas imediações do Valongo já havia sido encontrado o cemitério de pretos novos, originalmente um pântano onde eram lançados os corpos daqueles que não haviam resistido à viagem e atualmente um sítio arqueológico, localizado na rua Pedro Ernesto – que também já foi chamada de rua da Harmonia, caminho da Gamboa e rua do Cemitério.

Consta que o cheiro na região depois das chuvas era tão horrível que o intendente geral da polícia, Paulo Fernandes Viana, em 1815, chegou a mandar um ofício ao juíz do crime do bairro, solicitando que a área fosse aterrada e que os negociantes que lançassem cadáveres ali fossem multados.

A importância do achado não é pequena. Afinal, passaram pelo Valongo nada menos do que 897.748 africanos escravizados

A importância do achado não é pequena. Afinal, de fins do século 18 até 1843, data de sua desativação como local de desembarque de escravos, passaram pelo Valongo nada menos do que 897.748 africanos escravizados, segundo dados do projeto The Transatlantic Slave Trade Database (O Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, em português), que reúne informações sobre todas as viagens da África para as Américas realizadas por navios negreiros entre 1514 e 1866.

Povoado e frequentado

Junto com alguns outros portos na Bahia e em Pernambuco, o Valongo foi a porta de entrada para os últimos africanos escravizados que entraram no país. Em seu entorno, toda uma estrutura de organização do comércio escravista se desenvolveu.

Desembarque
‘Desembarque’ (1835), pintura do artista alemão J. M. Rugendas. O cais de Valongo foi a porta de entrada para os últimos africanos escravizados no Brasil. Estima-se que por ele tenham passado cerca de 900 mil negros.

A peça-mestra dessa estrutura era justamente os “homens de Valongo” – não por acaso, a forma como eram denominados os traficantes –, mas dela também participavam comissários da alfândega, capitães dos navios, tropeiros, ciganos, libertos e até ladrões. Não é exagero afirmar que parte substancial da sociedade carioca contemporânea passou por ali.

Depois da transferência do mercado de escravos para o Valongo, a área quase rural, distante dos olhares curiosos dos viajantes estrangeiros, adensou-se com a construção de novos trapiches, armazéns, mercados, casas de negociantes e pequenas lojas.

São justamente as ruínas desse entorno – além de objetos pertencentes aos escravos, como joias e amuletos – que vêm sendo encontradas por historiadores e arqueólogos da prefeitura da cidade, responsável pelas escavações.

Memorial servirá para lembrar que a cultura negra carioca tem origem em um episódio terrível

O plano da prefeitura é transformar o lugar em um memorial (veja o vídeo do projeto no site de O Globo). Caso se torne realidade, a iniciativa é mais do que louvável. Afinal, memoriais servem para não deixar esquecer.

Este, ao expor uma das faces mais cruéis da escravidão brasileira, servirá para mostrar que a cultura negra carioca, tão importante para a identidade nacional brasileira, tem origem em um episódio terrível. Disso, ninguém mais vai poder esquecer.

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro