Um dos tópicos de todas as gramáticas é a análise. Essa prática tem tanto relevo que muitas aulas lhe são dedicadas, e ‘saber português’ é frequentemente associado a ‘saber fazer análises gramaticais do português’.
Pode-se demonstrar com relativa facilidade que as duas ‘competências’ são de natureza diferente: por um lado, crianças falam (muito!) antes de saber fonologia, morfologia e sintaxe e, por outro, muitos povos escreveram antes de construírem as gramáticas de sua língua.
Parece claro que a ‘competência’ mais importante é saber a língua. O que se requer dos cidadãos é fundamentalmente que saibam ler e escrever (e falar e ouvir).
A ‘correção’ é uma ambição criada pela sociedade. Nas ‘festas’, pergunta-se a eventuais professores sobre a pronúncia de tal palavra ou se comenta o quanto um político ou artista fala ‘errado’. Mas nunca se discute sujeito indeterminado, agente da passiva ou classes de palavras.
No entanto, há certamente um déficit de análise. Ou falta a coerência elementar na aplicação de conceitos ou o domínio de ferramentas conceituais que permitam compreender o que ocorre. Quando se quer analisar, não basta ensinar regras da norma. Nem basta encontrar um adjunto em um exemplo escolar. Os verdadeiros testes são a coerência na aplicação de conceitos e a capacidade de compreender fatos novos, mesmo surpreendentes.
Vejamos alguns exemplos. Primeiro, dois casos de incoerência das gramáticas. Depois, um exemplo de fatos novos.
Incoerências gramaticais
Professores e alunos aprenderam que se deve dizer ‘vendem-se flores’ e que essa estrutura é passiva. Engoliram que o ‘se’ dessa oração é diferente do ‘se’ de ‘precisa-se de empregados’, uma tese impossível de demonstrar. E aceitaram que ‘aluga-se esta casa’ quer dizer ‘esta casa é alugada’. Contra todas as evidências, porque todo mundo sabe que esse anúncio significa que a casa está vazia e disponível. Aceitaram também que ‘Ama-se Deus’ é uma passiva, mas ‘ama-se a Deus’, não (ou que ‘amar’ é transitivo direto no primeiro caso e indireto no segundo!). E que em ‘ama-se a Deus’, ‘Deus’ é um objeto direto (preposicionado), mas em ‘ama-se Deus’, ‘Deus’ é sujeito. Esses argumentos, apresentados cuidadosa e mais extensivamente, estão em “O pronome ‘se’”, que é de 1909 (!), publicado na coletânea Dificuldades da língua portuguesa, de Said Ali. Uma coerência mínima expurgaria as gramáticas dessa ‘análise’.
Em ‘O período composto’ (capítulo de Princípios de linguística descritiva, de Mário Perini), o autor desmonta outra abordagem inconsistente. Analisa o período “A menina disse que o cachorro está doente”. Primeiro, recapitula a análise das gramáticas, que é a seguinte: a) o período é composto; b) a oração principal é “a menina disse”; c) a subordinada é “que o cachorro está doente”.
Perini destrói a análise peça por peça e, mais importante, faz isso seguindo as definições das gramáticas.
Por partes: a) aceita que o período é composto; b) a oração principal, no entanto, segundo sua análise, é o período todo, e não apenas “a menina disse”, por uma razão muito simples: “a menina disse” nem é uma oração, pois lhe falta o objeto, já que “disse” é um verbo transitivo (por isso, diz Perini, a oração principal equivale ao período, pois o que segue “disse” é seu objeto direto); c) a oração subordinada não é “que o cachorro está doente”, mas “o cachorro está doente”; de novo, por uma razão simples: “que o cachorro está doente” não é uma oração (essa estrutura nunca é proferida separadamente); se nem é oração, não poderia ser a subordinada; d) essa estrutura que começa com “que” é um sintagma nominal, cujo papel é o de objeto direto (portanto, o objeto direto não equivale à oração apenas, mas a toda essa estrutura, que, claro, a inclui). Bem mais coerente!
Fatos novos
Vejamos agora um dado bastante excepcional, de um tipo que nunca é considerado nos manuais, mas que professores precisariam saber analisar. Ocorreu em um anúncio popular de pó de guaraná (pode ser encontrado facilmente na internet). O trecho que importa é “a flôr de zíaco do Amazonas”.
Primeiro, descobre-se que o texto quer dizer que o tal pó é ‘afrodisíaco’ (não importa muito onde o autor da placa ouviu essa informação, nem se ela circula de fato). É isso que faz rir, aliás. Feita a leitura, começa a análise propriamente dita, cujo objetivo é responder à seguinte questão: como se passou de ‘afrodisíaco’ para ‘a flor de zíaco’?
Os fatos a serem considerados são: a) sequências como ‘a flor/a gente’ são proferidas sem pausa, mas a escrita as separa; é o que faz o autor da placa (separa “a fro”); b) o rotacismo (r por l) é comum nas variedades interioranas (e mesmo em algumas urbanas, com as migrações, e os rr finais caem (dotô, flô / frô), o que leva o autor da placa a grafar o r medial de “fror” com l, e a restabelecer o r final; d) a palavra pronunciada “di” se escreve “de” – é o que ele fez; e) o som “z” inicial se escreve sempre com “z” – e ele acerta de novo!
Ou seja, o autor da placa, embora tivesse interpretado equivocadamente a sequência ‘afrodisíaco’, grafou-a ‘corretamente’, em todos os casos em que poderia errar, depois de tê-la interpretado como ‘a flor de zíaco’ (a hipótese de que tenha ‘pensado’ que o remédio tem alguma relação com flor, assim como outros a tem com casca, raiz etc., merece uma investigação).
Esse dado revela que uma mesma sequência pode eventualmente ser ‘segmentada’ de diferentes formas, o que, entre outras coisas, permite análises corretas, mas também é fonte de erros de grafia e de humor, conforme o caso: escrever ‘serhumano’ ou ‘agente’ (por ‘ser humano’ e ‘a gente’) são exemplos de um erro; interpretar ‘consumo’ como ‘o que ainda não foi espremido’ (com sumo) é exemplo de humor.
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas