Somos animais. Isto quer dizer que não fabricamos nosso próprio alimento como os vegetais, a partir de luz, gás carbônico e minerais: alimentamo-nos de vegetais ou de animais menos espertos que nós. Hoje, vamos simplesmente ao supermercado, mas nos primórdios de nossa evolução éramos coletores e caçadores. Vários grupos humanos ditos primitivos – e cada vez menos numerosos – continuam sendo coletores e caçadores. Nesses grupos, cada um fabrica seus próprios instrumentos de caça, suas vestimentas e outros utensílios, e não há propriedade privada.
Porém, embora pareçam muito diferentes, executivos pendurados em seus celulares de último tipo e aborígenes australianos têm basicamente a mesma fisiologia, são membros da mesma espécie e, por isso mesmo, caso cruzem, produzirão uma descendência fértil. Mas então por que foram os ancestrais dos atuais executivos que invadiram as terras dos coletores-caçadores e não o contrário?
Uma das principais razões foi a agricultura, inventada há cerca de 10 mil anos no chamado “crescente fértil”, uma área da Eurásia que hoje corresponde ao Oriente Médio, Turquia e outros países, e que já não parece tão fértil. Afinal, praticar agricultura implica em desmatamento e sedentarização. Isso permite produzir mais alimento que o mínimo necessário para a subsistência, especialmente se a agricultura for associada à criação de animais, devidamente domesticados.
A trilogia humanos–espécies cultivadas–animais domésticos é bastante eficiente, produz excedentes que podem ser trocados com grupos humanos vizinhos, permite maior crescimento populacional, e também sustentar categorias e funções não-alimentares, como os artesãos, os soldados, os sacerdotes, os burocratas.
Uma história conhecida
O problema é a sustentabilidade do método: a agricultura esgota a fertilidade do solo, grupos humanos de alta densidade são mais suscetíveis a epidemias, e sistemas políticos centralizados são reféns da saúde mental de seus líderes. Se os campos de minha aldeia estão ressecados ou infestados, olharei com inveja os da aldeia vizinha e tentarei tomá-los, a força se necessário. Meu sacerdote ajudará, decretando que os vizinhos são bárbaros, infiéis, ou algo parecido.
Essa sequência evolutiva é bem conhecida e documentada para as populações europeias, mas ocorreu de forma independente em diferentes continentes, seguindo basicamente as mesmas etapas. Mas como assim, se os povos que a viveram eram tão diferentes? Bem, eram todos humanos, isto é, animais, mas que inventaram coisas que nenhuma outra espécie inventou: a escrita, a religião, a cultura, o dinheiro, o arado, a pólvora, a metalurgia, a medicina, não necessariamente nesta ordem.
Nenhuma outra espécie utiliza tantos recursos naturais para funções não alimentares e não reprodutivas, a chamada exergia, como a lenha o petróleo ou a eletricidade que usamos para nos aquecer, refrescar, transportar ou simplesmente distrair. Essas invenções nos tornaram menos vulneráveis à seleção natural, mais poderosos e arrogantes, e a atual crise ambiental mostra de forma eloquente os limites de nossas capacidades.
Criamos deuses e mitos fundadores que nos colocam em posição de destaque em relação a todas as demais espécies, justificando a posteriori a exploração à qual as submetemos. Se necessário para a agenda expansionista, negamos inclusive a própria humanidade dos vizinhos cujas terras e bens cobiçamos, como fizeram os conquistadores europeus.
Se você quer entender por que coexistem até hoje grupos humanos com estratégias de sobrevivência tão diferentes quanto os esquimós e os nerds e desmistificar a suposta superioridade dos últimos em relação aos primeiros, recomendo a leitura de Armas, germes e aço, de Jared Diamond: pode provocar um baque na sua autoestima de suposto civilizado, mas será um exercício saudável e instrutivo tentar refutar as teses que o autor defende.
Crescer, crescer, crescer…
O fato é que ao longo da historia desenvolvemos estratégias que nos permitem escapar de praticamente todos os mecanismos de regulação que controlam a densidade das demais espécies. Uma capivara não pode importar pasto de outro continente, nem uma onça obter carne produzida a 10 mil quilômetros de seu território. Mas nós podemos: afinal, crescemos, crescemos, a ponto de o crescimento ter se tornado uma obsessão.
O país A está em melhor situação que o país B porque teve maior crescimento econômico. O candidato A pede seu voto, prometendo promover mais crescimento que o candidato B. Não há nada parecido no mundo natural, onde os biomas evoluem até alcançar o clímax, estado em que a biomassa é essencialmente constante. O crescimento nesse caso não é quantitativo: refere-se à complexidade, diversidade e eficiência.
Alguém se anima a propor o crescimento zero e a eficiência máxima como plataforma eleitoral? Parece que não. O mais perto que chegamos disso foi o conceito de desenvolvimento sustentável, que é simpático e tranquilizador, embora ninguém saiba ainda ao certo o que é.
Até onde cresceremos? Até esgotarmos a capacidade de suporte da biosfera? Ou sermos vítima do desregramento global do clima, por obra e graça própria? A nossa inventividade tecnológica nos salvará no ultimo minuto, como nos filmes? Há controvérsias, uma vez que nossa capacidade de destruição cresce muito mais rapidamente que a de remediação dos estragos causados. Se tudo der errado, escaparemos – uns poucos felizardos – para algum outro planeta onde quem sabe possamos recomeçar tudo outra vez.
Provavelmente não desapareceremos: vamos nos tornar menos numerosos e gulosos, e vai ser um processo um bocado doloroso: quanto maior o gigante, maior o tombo.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro