Em artigo recentemente publicado na Nature Physics, Alex Chin e colaboradores afirmam que seus resultados representam um passo importante para a consolidação da biologia quântica como uma nova e verdadeiramente interdisciplinar área de pesquisa. A afirmativa não resulta apenas de exagerado entusiasmo dos autores. Importantes meios de divulgação científica estão ecoando as boas novas, sobretudo pelo que representam para a criação de novas tecnologias, como energia solar mais eficiente (ver as colunas ‘O big bang da evolução’ e ‘Emaranhamento quântico na biologia’).
Estamos assistindo talvez a um dos pontos máximos da inovação científica prevista por Erwin Schrödinger há mais de 70 anos. Em ‘A vida se baseia nas leis da física?’ – capítulo do livro O que é vida? –, o físico austríaco argumenta que os organismos multicelulares não são de grosseira manufatura humana, mas a mais requintada obra-prima já realizada pelas leis da mecânica quântica. Foi inspirado nessa obra que James Dewey Watson decidiu investigar os ‘códigos de instruções hereditárias’ sugeridos por Schrödinger e terminou chegando à definição da estrutura molecular do DNA, em colaboração com Francis Crick e Maurice Wilkins.
Reflexos tecnológicos são exaltados, mas convém também estar atento aos reflexos pedagógicos. Este é o século da biologia, principalmente pelos grandes avanços resultantes das aplicações de teorias avançadas da física, como a mecânica quântica. Então, antes de entrar no tema central desta coluna, cabe uma pergunta: quantos cursos de biologia no Brasil estão considerando a necessária introdução da teoria quântica em seus componentes curriculares? Ao que sei, apenas a licenciatura em ciências da natureza da Unila tem uma disciplina nesse sentido, denominada ‘Átomos e moléculas’.
Crescendo na literatura
O tratamento moderno da fotossíntese, com utilização explícita de conceitos como coerência, decoerência e emaranhamento, entre outros da teoria quântica, é apenas a ponta mais visível e charmosa de um grande iceberg chamado biologia quântica. O Google já recupera mais de 147 mil documentos sobre o tópico “quantum biology”. O número é 36 e 10 vezes menor do que o recuperado para “quantum physics” e “quantum chemistry”, respectivamente. Parece pouco, mas o montante é apenas cinco vezes menor do que a quantidade de documentos encontrados para “quantum entanglement”, um tema de grande visibilidade, pela sua relação com a computação quântica.
Do ponto de vista de impacto na literatura científica, a importância da biologia quântica é bem recente. Na base Web of Science, o primeiro artigo registrado sobre o tema data de 1956, mas ele não despertou interesse. O segundo artigo só foi publicado cinco anos depois, e até o início dos anos 1990 a quantidade de artigo por ano não chegou a cinco. A primeira vez que essa quantidade ultrapassou a dezena foi em 2012. Por esses números, parece que o assunto tem despertado pouco interesse, mas há outro indicador de sua importância.
Em junho de 2011, a prestigiosa revista Nature reservou espaço em sua seção de destaque para o artigo ‘A aurora da biologia quântica’ e, em dezembro de 2012, a Nature Physics publicou um artigo de revisão sobre o tema. Neste, intitulado ‘Quantum biology’, Neill Lambert e colaboradores apresentam aplicações da teoria quântica em várias áreas da biologia, entre as quais destacarei aqui aquelas referentes à fotossíntese, cujo avanço nesse sentido é notável.
O primeiro trabalho relatando o uso da mecânica quântica (termo comumente usado pelos físicos para teoria quântica) na interpretação da fotossíntese foi publicado em 1994, no The Journal of Physical Chemistry. Tratava-se de uma abordagem básica e simples, no contexto da complexidade da fotossíntese e mereceu pouca atenção da comunidade científica. A abordagem moderna desse problema só teve início na segunda metade dos anos 2000, sendo um artigo publicado em 2008, por pesquisadores de Harvard e do MIT, a referência básica.
O objeto básico desses estudos é a proteína conhecida como Fenna-Matthews-Olson, FMO para os íntimos. Ela é encontrada em bactérias de enxofre verde, que por sua vez são encontradas nas profundezas de lagos e oceanos. A FMO é uma das antenas utilizadas pelos organismos fotossintetizantes, pois contém em sua estrutura moléculas de clorofila.
Ao incidir sobre a bactéria de enxofre verde, a radiação solar tem sua energia transformada em excitação das moléculas dos pigmentos de clorofila. Essa energia de excitação é transferida de pigmento em pigmento, até o ponto em que ela se transforma em energia química.
A questão central é que esse processo é realizado sem praticamente qualquer perda de energia, ou seja, com eficiência em torno de 100%.
Mantendo a coerência
Os resultados publicados nos últimos cinco anos, e agora entusiasticamente festejados por conta do trabalho de Alex Chin e colaboradores – aqui, aqui e aqui –, sugerem que o mecanismo resulta da transferência de excitação eletrônica de pigmento em pigmento, até chegar ao centro de reação, onde a energia solar é transformada em energia bioquímica. Se os detalhes desse processo continuam em discussão, sendo objeto de inúmeras pesquisas, parece não haver questionamento sobre a natureza do seu início, que ocorre quando a luz solar atinge a clorofila e outros pigmentos fotossensíveis presentes nas folhas de plantas e algas.
Essa interação produz um estado excitado, cuja energia é usada para criar um par elétron-buraco, que funciona como um ente quântico denominado éxciton. A transferência de excitação eletrônica mencionada acima significa que o éxciton é ‘transferido’ até o centro de reação, onde o elétron é liberado para iniciar o processo de conversão da energia elétrica em energia bioquímica. Como se fossem abelhas operárias, centenas de pigmentos fornecem energia para o centro de reação, a abelha rainha dessa colmeia metafórica.
Existem muitas hipóteses e modelos para explicar essa transferência de excitação eletrônica e ainda não há resultados experimentais suficientes para uma definição. Nos festejados trabalhos de Alex Chin e colaboradores e de Elisabetta Colini e colegas, é defendida a hipótese de que a persistência da coerência quântica induzida por vibrações moleculares é a chave do mecanismo. Ou seja, as vibrações moleculares, que até então eram consideradas responsáveis pela perda da coerência quântica, agora são responsáveis pela sua manutenção.
Manutenção da coerência quântica significa que o éxciton é mantido como um ente quântico, por intermédio do entrelaçamento quântico entre elétron e buraco. Sendo assim, ele comporta-se como uma onda e navega de pigmento em pigmento até chegar ao centro de reação. As vibrações moleculares dão um empurrãozinho, através de um mecanismo complicado demais para ser discutido aqui.
Tudo se passa como se o éxciton transmitisse a informação para o pigmento seguinte e lá fosse formado novo éxciton, como uma onda se propagando no mar. Isso só é possível enquanto persistir o estado de coerência quântica que permite o entrelaçamento do elétron e do buraco. Se esse estado desaparecer, a informação não passará para o ponto seguinte no complexo fotossintetizante.
O curioso nessas interpretações é que existem muitas alternativas de caminhos a seguir, mas o éxciton escolhe aquele que resulta na maior eficiência. Essa é outra característica do comportamento quântico desse sistema.
Podemos imaginar uma extraordinária coreografia nesse processo de transferência de energia ou de navegação do éxciton. Guardadas as diferenças, a energia de excitação passa de pigmento em pigmento, como a energia mecânica passa de bola em bola no pêndulo de Newton – ilustrado no vídeo abaixo.
Desta vez, por uma questão de objetividade e de dimensionamento da coluna, ficaremos restritos ao uso da teoria quântica na explicação da fotossíntese, mas três artigos de revisão recentemente publicados – um, dois e três – discutem mais de cinco casos de aplicação da teoria quântica em sistemas biológicos.
Do ponto de vista tecnológico, a saída do laboratório para a fábrica é esperada na confecção de células solares mais eficientes.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana