Como qualquer obra de ficção científica, o filme Interestelar pode despertar três tipos de sentimento, todos eles embalados pelos estonteantes efeitos visuais que lhe renderam o Oscar deste ano nessa categoria. Os aficionados do gênero provavelmente ficarão encantados com as extrapolações de nossa realidade, representadas pela viagem intergaláctica, travessia de um buraco de minhoca para outra dimensão e navegação na borda de um buraco negro. Os não aficionados que desconhecem a ciência que está por trás do filme poderão considerá-lo um “filme muito mentiroso”.
O terceiro sentimento, geralmente de quem conhece a ciência que motivou o filme, é o de tentar analisar a correspondência entre a ficção roteirizada no filme e os conceitos científicos que a norteiam. E, nesse sentido, Interestelar é um exemplo notável. E nem poderia ser diferente. O filme teve a consultoria científica do renomado físico teórico Kip Thorne, o que faz da obra de Christopher Nolan uma bela oportunidade para discutir diversos aspectos das teorias da relatividade, restrita e geral. Existem exageros no roteiro que alguns poderão classificar como erros científicos, mas são necessários para dar ritmo e graça à narrativa.
É bom lembrar, por exemplo, que o efeito estilingue na ergosfera (região mais exterior) do buraco negro mostrado no filme, e que alguns podem considerar um exagero, foi sugerido por Roger Penrose, renomado físico-matemático britânico e colaborador do também físico britânico Stephen Hawking, um dos mais famosos cientistas da atualidade.
Se, ao entrar na ergosfera de um buraco negro em rotação (caso do Gargantua, de Interestelar), um objeto for dividido em dois, uma parte poderá ser sugada pelo buraco negro e a outra será ejetada para fora com energia maior do que a que entrou. Portanto, faz sentido a estratégia do astronauta Cooper (cuidado com spoilers, a partir daqui), que primeiro largou o robô TARS no buraco negro e depois se lançou em sacrifício para que sua colega Amélia pudesse ser ejetada em direção a outro ponto do cosmos.
O lançamento de TARS tinha outro objetivo mais importante: coletar dados sobre Gargantua, para que Murph, filha de Cooper, pudesse finalmente resolver a equação que salvaria a humanidade. Não vou aqui discutir como TARS conseguiu transferir os dados para Cooper, nem como este escapou do Gargantua e caiu no interior do tesserato, uma estrutura hipotética de cinco dimensões que mantém o buraco da minhoca. Recomendo a leitura do texto publicado no Bússola, o blogue da CH On-line, e da coluna do professor Adilson de Oliveira, que já trataram desses paradoxos e extrapolações.
Derivações da relatividade
O lado científico do filme tem a ver essencialmente com três conceitos: buraco negro, buraco de minhoca e viagem no tempo. Esses conceitos se baseiam em interpretações das teorias da relatividade restrita e geral, praticamente não contestadas na comunidade científica. Além de buracos negros e buracos de minhoca, a teoria da relatividade geral prevê a existência de buracos brancos, objetos ausentes no filme, mas que têm despertado algum interesse de parte da comunidade científica e ceticismo talvez da maioria.
Durante algum tempo, buracos negros, buracos brancos e buracos de minhoca andaram meio misturados, enroscados nas imprecisões teóricas. O primeiro passo para a descoberta do buraco negro foi dado pelo astrônomo e físico alemão Karl Schwarzschild (1873-1916), logo depois do famoso artigo de Albert Einstein (1879-1955) sobre a teoria da relatividade geral, publicado em dezembro de 1915. Schwarzschild foi o primeiro a apresentar uma solução exata das equações de Einstein para a relatividade geral, e o fez no leito de morte.
Essencialmente, as equações de Einstein contêm, em um lado, informações sobre massa e energia e, no outro lado, as curvaturas do espaço-tempo. Então, é possível manipular massa e energia e verificar o efeito que têm na geometria do espaço-tempo, e determinar as propriedades que essa configuração apresenta. A geometria do espaço-tempo está para a teoria da relatividade geral assim como a gravidade está para a física newtoniana. Mas, ao contrário de uma força, como na física clássica, é a deformação do espaço-tempo que faz os corpos se movimentarem no cosmos.
De acordo com Schwarzschild, quando um corpo muito massivo colapsa devido ao seu próprio peso, ele atingirá um tamanho crítico a partir do qual se transformará em um ponto com densidade infinita, onde as leis da física deixarão de valer, e até mesmo o tempo deixará de existir. Na linguagem científica, o ponto encontrado por Schwarzschild era denominado singularidade no espaço-tempo e tinha em sua volta um intenso campo gravitacional.
Einstein não gostou da ideia e, em 1935, escreveu um artigo com o físico israelense Nathan Rosen (1909-1995) para mostrar que essas singularidades não existiam. Eles conseguiram uma solução na qual não havia a necessidade de um ponto onde tudo parava e nada valia. Mas, em vez de uma singularidade, eles chegaram a uma ponte ligando nosso universo a um universo paralelo. Nascia a ponte Einstein-Rosen (ponte ER), um objeto ainda mais mirabolante do que a singularidade de Schwarzschild.
A singularidade de Schwarzschild ficou conhecida como buraco negro, e o aperfeiçoamento da ideia de Einstein desembocou no buraco de minhoca (wormhole, em inglês). Mas, antes disso, a ponte ER exigiu a presença de um buraco branco, pois logo ficou claro que ela só poderia existir se ligasse uma singularidade em cada um dos universos. Então, em vez de eliminar uma singularidade, Einstein criou duas. A singularidade de um lado seria o buraco negro e a do outro lado, por analogia, ficou conhecida como buraco branco.
Túnel cósmico
Em 1955, John Archibald Wheeler (1911-2008), um dos últimos colaboradores de Einstein, tornou palatável a ideia da ponte ER, mostrando que era possível construir um túnel no espaço-tempo do nosso próprio universo, sem a necessidade do universo paralelo inventado por Einstein e Rosen. Ao novo objeto, ele deu o nome de buraco de minhoca, que logo caiu na boca do povo. Wheeler era bom em criar nomes. Foi ele também quem cunhou a expressão buraco negro, nos anos 1960.
O objeto criado por Wheeler funcionava apenas na escala atômica, mas tinha todas as características de um buraco cósmico, como seria descoberto por Kip Thorne em 1985. Naquele ano, Carl Sagan (1934-1996) estava escrevendo seu livro Contato, e queria saber de Thorne se era verossímil a existência de um túnel, de modo que alienígenas o atravessassem até chegar ao nosso planeta. Em trabalho publicado em 1988 na renomada Physical Review Letters, Thorne e seus colaboradores apresentam os cálculos afirmativos.
O que ninguém sabe, até hoje, é como essa estrutura que permitiria viajar pelo espaço-tempo poderá ser feita. É por isso que, no filme, o buraco de minhoca nas proximidades de Saturno foi providenciado por uma misteriosa e avançada civilização.
Todas as referências feitas a viagens no tempo são previstas teoricamente, até mesmo a volta ao passado, mas esta é improvável, porque viola a causalidade. Por exemplo: alguém volta ao passado e mata seus pais. A consequência é que esse alguém não nascerá e, portanto, não poderá estar no futuro.
A tentativa sem sucesso de Cooper interferir no passado e fazer com que sua filha não o deixe partir talvez seja uma referência à improbabilidade mencionada acima. Por outro lado, a volta para o futuro, representada pelo seu encontro com a filha já em idade avançada, é uma realidade observada rotineiramente em experimentos com partículas elementares. É a realidade e a ficção andando lado a lado.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana