Câncer: supervilão celular

O filme Batman – o Cavaleiro das Trevas, dirigido por Christopher Nolan e lançado em 2008, é considerado o melhor da série do super-herói encapuzado. Interessante notar que a grande estrela do filme acabou não sendo o próprio homem-morcego, mas o seu arqui-inimigo, o supercriminoso louco e genial Coringa, interpretado por Heath Ledger, que ganhou um Oscar póstumo pela sua atuação.

 

Trailer do filme Batman – o Cavaleiro das Trevas, em que o ator australiano Heath Ledger (1979-2008) tem atuação brilhante no papel do louco e genial supervilão Coringa.

No mundo organizado e integrado dos nossos órgãos e tecidos também aparecem Coringas celulares, anárquicos e destrutivos – são os tumores malignos. Nesta coluna quero fazer algumas reflexões sobre esses inimigos públicos que agem como verdadeiros supervilões celulares.

O câncer emerge da multiplicação desenfreada de uma célula que perde as amarras sociais que ditavam seu bom comportamento

O câncer é uma doença genética de células somáticas – a manifestação de um genoma profundamente alterado.

Ele emerge da multiplicação desenfreada e expansão clonal de uma única célula que, por meio de mutações cumulativas, perde as amarras sociais que ditavam seu bom comportamento no tecido e se torna, em essência, um sociopata celular.

Para que possamos captar bem o sentido dessas afirmativas, é preciso revisar alguns mecanismos básicos que estão na gênese dos tumores malignos. 

Sociedades de células

Em uma coluna anterior, discuti o fato de que nós, humanos, somos concebidos como uma única célula, o zigoto, produzido pela união de um óvulo e um espermatozoide. A partir de um processo maravilhoso de multiplicação e diferenciação celular, esse único zigoto dá origem a um adulto com 10 trilhões de células de mais de uma centena de tipos diferentes.

Estamos tão acostumados a pensar em nosso corpo como único e integrado, que nem nos ocorre considerar que ele é, de fato, uma sociedade de células que estão juntas, interagem e se comportam unidas pelo bem comum do todo.

Nosso corpo é uma sociedade de células que estão juntas, interagem e se comportam unidas pelo bem comum do todo

A primeira pessoa a realçar essa idéia do “bem comum” de uma sociedade foi o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588–1679),  no século 17. Em sua obra magna Leviatã (1651), Hobbes expôs a sua doutrina da fundação dos estados e governos legítimos com base na  teoria do contrato social.

Hobbes especulou sobre o que seria a vida sem governo, uma condição que ele chamou de “estado da natureza”, no qual cada indivíduo teria o direito, ou licença, para fazer o que bem entendesse. Isso, argumenta Hobbes, levaria a uma “guerra de todos contra todos”. Para escapar desse estado de guerra, os homens aderiram a um contrato social e estabeleceram uma sociedade civil.

Em analogia à doutrina de Hobbes, poderíamos pensar nos seres unicelulares como indivíduos isolados, em estado da natureza, e nos metazoários, multicelulares, como sociedades civis, nas quais células entram em um contrato social em prol do bem comum, que é a saúde do organismo.

Assim, as células de um tecido humano vivem bem comportadas, ligadas às suas vizinhas por interações moleculares específicas, e só se dividem em sincronia com as outras. Se, por acaso, o genoma de uma célula é lesado, ela comete suicídio (chamado apoptose) para não colocar em risco a integridade de todo o organismo.

Uma espécie enigmática

A ideia dos organismos metazoários como sociedades celulares pautadas em rígidas regras de comportamento fica bastante evidente quando examinamos o ciclo de vida do Dictiostelium discoideum. Esta é uma espécie enigmática, que tem uma posição incerta na “árvore da vida”.

Em certas fases, o Dictyostelium é unicelular e existe como ameba. Em outras fases, ele é multicelular e congrega várias amebas para formar tecidos diferenciados. Assim, transita livremente entre o mundo dos protozoários e dos metazoários.

Dictiostelium discoideum
Clique na figura para ampliá-la. O esquema no topo (A) mostra o ciclo de vida do ‘Dictyostelium discoideum’, que transita entre o mundo dos protozoários e dos metazoários (arte: CC 3.0 BY-SA – Tijmen Stam/IIVQ/Hideshi). Na parte de baixo da figura (B), uma microscopia eletrônica de varredura das amebas do ‘Dictyostelium’ se agregando para formar uma massa multicelular (foto: Bruno in Columbus).

Enquanto ameba, o Dictiostelium se alimenta fartamente de bactérias e se divide nas poças de água dos bosques, formando o lodo. Se, por acaso, as condições ambientais se tornam hostis e o alimento fica escasso, algo espetacular ocorre.

Uma ameba começa a emitir ondas de uma molécula transdutora de sinal chamada AMP cíclico. Imediatamente, as outras amebas se congregam a essa célula marca-passo e formam um agregado multicelular (ver figura) que migra em busca de outro local com boas condições ambientais e comida abundante. O agregado multicelular então se diferencia em um talo e um corpo frutífero cheio de esporos. Após certo tempo, os esporos são liberados e se transformam novamente em amebas de vida livre.

De certa maneira, ainda temos um pouco de Dictiostelium, pois somos metazoários multicelulares, mas podemos também existir como formas unicelulares livres, as células germinativas (espermatozóides e óvulos). Aliás, a diferença entre as células germinativas, que vão formar futuras gerações, e as células somáticas, que constituem nosso corpo e morrerão com ele, é absolutamente fundamental.

O câncer é um essencialmente um fenômeno que envolve células somáticas. Em mais de 95% dos casos ele não é passado para gerações futuras, pois não acomete as células germinativas. Todavia, em algumas famílias ocorre transmissão hereditária de mutações específicas que predispõem fortemente os portadores a desenvolverem tumores malignos.

Divisão imperfeita

Um dos pilares da teoria celular dos organismos vivos é o dogma de que omni cellula e cellula (“toda célula vem de uma célula”), aparentemente enunciado pela primeira vez pelo fisiologista alemão Rudolf Virchow (1821-1902). Daí vem a ideia de que todas as células existentes na Terra, tanto em organismos unicelulares quanto pluricelulares, são derivadas de uma primeira célula primitiva que viveu há quatro bilhões de anos. A vida não se cria repetidamente – ela apenas se propaga.

A divisão celular precisa ser precedida da divisão do seu material genético, o DNA. Graças a vários mecanismos de verificação e edição do DNA duplicado, tal divisão é quase perfeita. “Quase” quer dizer que ocorre um erro a cada cem bilhões de bases duplicadas, ou seja,  que a taxa de mutação no DNA é de 10-8 por base. Como em uma divisão de célula humana seis bilhões de bases são duplicadas, em média espera-se então que ocorra uma mutação aleatória a cada 16 divisões celulares.

Poderia ser perguntado: por que a divisão do DNA não é perfeita e livre de erros? A resposta é que, na ausência de mutações, não seria possível a ocorrência da evolução. Assim, a taxa de mutações que existe parece ter sido otimizada pela própria evolução. Se ela fosse menor, a evolução ficaria prejudicada. Se fosse maior, o sistema ficaria demasiadamente instável.

O câncer é o preço que pagamos por ter evoluído!

Assim, na divisão das células de um tecido, mais cedo ou mais tarde vai ocorrer uma mutação que lhe dará uma capacidade reprodutiva maior que a de suas vizinhas. A sua progenia não só será grande, mas também carregará aquela mutação e formará um alvo maior para a ocorrência de novas mutações, que em tempo poderão levar ao câncer, como mostrado na figura abaixo.

É um processo darwiniano ocorrendo em tempo real – a célula cancerosa se torna mais e mais sociopática, um arqui-inimigo dentro de nós. Sob esse prisma, o câncer é o preço que pagamos por ter evoluído!

Proliferação do câncer
O câncer é uma doença genética de células somáticas que depende de múltiplas mutações cumulativas para se aperfeiçoar como “gênio do mal”.

Luz no final do túnel?

Assim, podemos entender agora que o câncer é uma doença genética de células somáticas que emerge e evolui à custa de um grande número de mutações cumulativas em seu DNA.

Essas mutações acometem principalmente três classes de genes: os chamados oncogenes, os genes supressores de tumor e os genes de reparo do DNA. Entretanto, não existe um “genoma do câncer” – cada tumor tem seu conjunto individual de mutações.

No mundo do câncer, como na Gotham City do Coringa, impera o mal e reina a anarquia – é o caos genômico. As células cancerosas mutantes dividem-se contínua e incontrolavelmente, são resistentes à apoptose, estimulam o crescimento de vasos sanguíneos para nutrir o tumor, quebram as interações com suas vizinhas, desgarram-se do tecido original e vão se alojar em locais distantes, no fenômeno da metástase. 

No mundo do câncer, impera o mal e reina a anarquia – é o caos genômico

Para conseguir evoluir darwinianamente no trajeto para a sociopatia e a criminalidade, uma célula cancerosa precisa sofrer um número enorme de alterações genéticas, o que seria improvável de ocorrer ao acaso.

Mas o que torna a célula cancerosa especialmente perigosa – um requinte de crueldade – é o momento em que ela sofre mutações nos próprios genes responsáveis pela manutenção da ordem e progresso no genoma. Dessa maneira, cria-se uma instabilidade genômica que vai propiciar a evolução do câncer.

Termino com uma nota positiva, pois talvez o feitiço possa ser virado contra o feiticeiro. Uma nova terapia muito promissora contra os tumores malignos que possuem mutações em genes de reparo de DNA é a “letalidade sintética”. Dois genes são sinteticamente letais se a mutação de um gene sozinho não é suficiente para tornar a célula inviável, mas a mutação simultânea de ambos provoca sua morte.

Se conseguirmos inibir outros genes de reparo que interagem com o gene de reparo mutado que o câncer está explorando, poderemos teoricamente matar as células cancerosas, poupando as células normais, que possuem cópias normais desse gene.

Uma publicação muito recente no periódico The Lancet mostrou que, realmente, o conceito parece funcionar na prática, pois tratamentos com inibidores da enzima poli(ADP-ribose) polimerase (PARP) foram capazes de induzir letalidade sintética em tumores de mama de mulheres com mutações nos genes BRCA1 ou BRCA2.

Esperamos que a letalidade sintética seja o tão esperado super-herói que vai nos ajudar a derrotar o câncer, este Coringa celular.

Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais