Certas palavras

Existem basicamente dois tipos de linguistas. Para ser um pouco mais específico, dois tipos de analistas do sentido de maneira geral. O espectro vai da filosofia da linguagem à analise do discurso (não necessariamente esta é uma linha reta, porque as questões se superpõem)..

Em um extremo, estão os que pensam que as palavras se referem a coisas previamente existentes: existe um líquido insípido e inodoro a que chamamos “água” (se aquecida, “água quente”). Conceitos dão conta de classes de coisas: “árvore” pode ser um exemplo.

Para esse time, o mundo é estável.

No meio do caminho, estão os que gostam de destacar que há coisas diferentemente nomeadas em culturas diferentes. Por exemplo, há línguas que distinguem e outras que não dão nomes diferentes para cursos d´água que desembocam em outro curso d´água ou no mar, entre outros critérios. Segundo o Houaiss, por exemplo, igarapé é um “riacho que nasce na mata e deságua em rio”. Para algumas línguas, o critério é o tamanho do curso: daí “riacho”, “arroio”, “rio” etc.

Para esse time, o mundo é estabilizado de maneira diferente em cada cultura, o que se reflete mais ou menos na língua. 

Uma palavra pode designar mais de uma coisa, ou mais de um aspecto dela

No outro extremo, estão os que acreditam que há uma relação instável entre o que acontece (também porque não se sabe muito bem o que acontece) e as palavras que tentam nomear um fato ou um evento. Estes se dão conta de que o mundo é instável mesmo para uma mesma língua. Dito de outra forma, preferem tratar de fatos deste tipo.

Uma palavra pode designar mais de uma coisa, ou mais de um aspecto dela. Também se disputa se uma coisa (fato) deve ou não ser designada por uma certa palavra.

Dou três exemplos.

 

É golpe ou não é golpe?

No Brasil destes dias, a principal disputa semântica gira em torno da palavra “golpe”. Num extremo estão os que dizem que não há golpe, porque não há tanques ou armas nas ruas. No outro, que há golpe, mesmo que ele não tenha as características do golpe “clássico” (militar, violento).

Alguns acham que são os militantes de esquerda (outra palavra puxada para todos os lados) que dizem que há golpe, mesmo sem os militares (porque ninguém é trouxa de usar a modalidade clássica, que pega muito mal; usa-se o parlamento, dá-se um ar de legalidade ao “golpe”).

Mas os fatos (e os ditos) mostram que isso não é verdade. Acabei de ler a seguinte afirmação, que não é “de esquerda”: “para mim [golpe] é ver 11 milhões de desempregados, muuuita (sic) gente morando na rua. Gente sem hospitais, saneamento básico, pessoas endividados (sic) que acreditaram no governo qdo (sic) disseram q (sic) os preços não iam subir e…”.

Aqui se vê que “golpe” significa coisa bem diferente de tanques nas ruas, e que não é só uma tese de esquerda. Aliás, o texto nem se refere ao golpe que teria sido o impeachment, mas a eventos anteriores e fora do universo específico do processo político em questão.

Para ler jornais, é preciso lidar com um dicionário com muitas acepções para a mesma palavra

Por isso, para ler jornais, é preciso lidar com um dicionário com muitas acepções para a mesma palavra.

Não há sentidos “verdadeiros” (no sentido de serem fixos e que se refeririam a fatos “claros”). Há sentidos históricos – que variam e que não pressupõem fatos “claros”. Como a história é cheia de contradições, elas aparecem também na disputa pelos sentidos.

Quem quer impor um sentido para uma palavra como esta também quer ter o poder de nomear e de gastar o dinheiro dos impostos mais com um grupo do que com outro.

 

Símbolos e ideologias

Outra palavra interessante, nestes dias, é “simbólico”, especialmente em contextos como “manter o Ministério da Cultura é simbólico” e “a economia obtida com o fim de alguns ministérios é simbólica”.

No primeiro exemplo, o sentido é positivo: o MinC simbolizaria que um governo valoriza a cultura. No segundo caso, o sentido é negativo: quem espera que a economia com a diminuição do número de ministérios seja grande (que os grandes gastos se devem ao fato de haver muitos ministérios) está enganado – ela é só simbólica.

Mas só a palavra “ideologia” pode competir com “golpe”. No Brasil, “ideologia” sempre quer dizer ideologia de esquerda (é uma peculiaridade nacional, acho).

Só a palavra “ideologia” pode competir com “golpe”. No Brasil, “ideologia” sempre quer dizer ideologia de esquerda (é uma peculiaridade nacional, acho)

Muito se disse que os últimos governos foram ideológicos. O antônimo de “ideologia”, para muitos, é “Estado” (em vez de uma diplomacia ideológica, uma de Estado). Para outros, o antônimo é “racional” (precisamos de menos ideologia e mais racionalidade na economia).

Um bom exemplo é uma espécie de linha fina que antecede o editorial da Folha de S. Paulo de 23/5: “Diretrizes do novo chanceler vão no rumo correto de uma diplomacia independente, mais pragmática, e livre do viés ideológico da era petista” (não discuto a política de antes e de agora, discuto o emprego da palavra “ideológica”. Por que não dizer que se trata de outra ideologia?).  

Há pouco tempo, um artigo de jornal (lamento não ter guardado; espero que ninguém imagine que eu poderia inventar isso) começava mais ou menos assim: precisamos diminuir os gastos do Estado e fazer uma reforma da previdência. E chega de ideologia.

Ora, esta é uma concepção ideológica!

É o que ocorre também na seguinte declaração do novo ministro da Agricultura (outrora foi conhecido como rei da motossera): “É preciso tirar o viés ideológico do campo”.

É provável que ambos tenham sido sinceros. É por isso que, no que se refere a esta palavra, a questão não é apenas ideológica. Há também um forte componente de estultícia.

Façam-me o favor!

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas