Micro, macro, quente e frio

Coisa notável nas grandes teorias da física é que elas jamais foram superadas em seus limites de aplicabilidade. No espaço macroscópico e nos limites de velocidade muito inferiores à da luz, as leis de Newton continuam valendo. Quando ultrapassamos a fronteira que separa o macrocosmo do microcosmo, é a mecânica quântica que passa a valer. E, quando atingimos velocidades próximas à da luz, a relatividade restrita se impõe. Neste momento, estamos testemunhando uma mudança de status na termodinâmica como resultado das atuais capacidades tecnológicas de obtenção de temperaturas muito baixas.

A escala de temperatura usada em nossas atividades cotidianas é a Celsius. A água congela a zero graus Celsius (0ºC), e o gelo seco é obtido a -78ºC. Estamos habituados a ouvir as previsões de temperatura ambiente em graus Celsius. Com alguma frequência, as temperaturas durante o inverno nas serras do Sul do Brasil atingem valores negativos na escala Celsius.

Estamos testemunhando uma mudança de status na termodinâmica como resultado das atuais capacidades tecnológicas de obtenção de temperaturas muito baixas

Nas atividades científicas, a escala de temperatura usual é a Kelvin, conhecida também como escala de temperatura absoluta, já que todos os seus valores são positivos. Não existe temperatura abaixo de zero na escala Kelvin, segundo os livros didáticos de termodinâmica básica. Mas os especialistas da área sabem, desde 1951, que em casos muito especiais é possível ter temperatura negativa na escala Kelvin. Na prática, a realização dessa proeza tem sido rara por causa de dificuldades técnicas. Isso justifica o fato de, em mais de 60 anos, termos pouco mais de 50 artigos sobre o tema publicados em revistas indexadas pela Web of Science (WoS).

No início deste ano, um artigo publicado na Science causou rebuliço na comunidade científica e nos meios de comunicação dedicados à divulgação científica. Pesquisadores da Universidade de Munique e do Instituto Max Planck (ambos na Alemanha), liderados por Ulrich Schneider, construíram um sistema atômico capaz de produzir temperatura negativa na escala Kelvin.

Antes de apresentar o motivo pelo qual esse sistema causou tanto impacto, se temperatura negativa já fora observada há mais de 60 anos, convém adiantar que ninguém vai sair por aí com um termômetro na mão medindo temperatura negativa na escala Kelvin; tampouco vamos ouvir alguém dizendo “se próximo do zero absoluto é tão frio, imagina em temperatura absoluta negativa”.

Em primeiro lugar, a medida da temperatura Kelvin é obtida a partir de medidas de energia interna de um sistema e não de um termômetro convencional; depois, na escala Kelvin, a temperatura negativa é maior que a positiva, na medida em que, colocando-se um sistema com temperatura absoluta negativa em contato com outro com temperatura positiva, a energia fluirá do primeiro para o segundo. Não se assuste, a explicação é razoavelmente simples. Difícil mesmo, como já dito, é estabelecer as condições para a existência de temperatura absoluta negativa.

Energia e entropia

Para entender o conceito de temperatura, é preciso entender os conceitos de energia interna e entropia de um sistema clássico e de um sistema quântico. Em um sistema clássico, não há limite máximo para a energia cinética de suas partículas. Com o aumento da temperatura, a água aquece, suas moléculas ganham progressivamente mais energia até entrar em ebulição e evaporar. Se o vapor d’água continuar submetido a temperaturas mais altas, as energias cinéticas das suas moléculas continuarão aumentando continuamente.

Nos sistemas quânticos, a energia não pode variar continuamente, como nos sistemas clássicos

Do mesmo modo, aumenta a entropia, que é proporcional à desordem do sistema. Ou seja, quanto mais ebulição, maior energia, maior desordem e maior entropia. Como a temperatura é proporcional à razão das variações da energia e da entropia, nos sistemas clássicos ela será sempre positiva. Ela seria negativa se a entropia diminuísse à medida que a energia aumentasse. Isso pode ocorrer em determinados sistemas quânticos.

Nos sistemas quânticos, a energia não pode variar continuamente, como nos sistemas clássicos. Um exemplo conhecido é o modelo do átomo de Bohr, no qual os elétrons giram em torno do núcleo, mas só podem girar em determinadas órbitas. Portanto, só podem ter determinados valores de energia. Imaginemos um sistema quântico mais simples que o átomo de Bohr: certo número de bolinhas, todas colocadas na prateleira inferior de uma estante de duas prateleiras. Essa é a situação de entropia mínima, em que o sistema se encontra no seu mais alto grau de organização.

Rede bidimensional
A imagem simula a configuração de energia de uma rede bidimensional. Os átomos (em vermelho) estão nos pontos de energia mínima, como a prateleira inferior mencionada no texto. (foto: Wikimedia Commons/ Sakurai2 – CC BY-SA 3.0)

Suponha que as bolinhas pulam para a prateleira superior à medida que são aquecidas, aumentando a energia do sistema. Quando cada prateleira for ocupada pela metade das bolinhas, o sistema atingirá seu estado de máxima entropia. Aumentando ainda mais a temperatura, mais bolinhas da prateleira inferior pulam para a superior. Esse processo continua até que todas as bolinhas ocupem a prateleira superior e o sistema volte a ter entropia mínima e energia máxima. É essa situação que origina temperatura absoluta negativa. Vejamos por quê.

Na primeira parte do ciclo, tanto a energia quanto a entropia crescem com a temperatura. Na segunda, a entropia diminui à medida que a energia cresce. De acordo com a termodinâmica, isso implica temperatura negativa. O fenômeno é conhecido como inversão de população, ou seja, há mais bolinhas no estado de maior energia. Portanto, no estado de temperatura negativa, existem mais bolinhas no estado de maior energia. Por isso esse estado é mais quente do que qualquer outro com temperatura positiva. Como já foi dito, se colocarmos um sistema com temperatura negativa em contato com outro com temperatura positiva, a energia fluirá do primeiro para o segundo.

Gás quântico ultrafrio

Desde 1951, sistemas com temperatura negativa vêm sendo obtidos com materiais magnéticos, nos quais a manipulação de seus spins permite estabelecer limites mínimos e máximos de energia, como a prateleira inferior (energia mínima) e a superior (energia máxima), e como exige a termodinâmica para obtenção de temperatura absoluta negativa (veja Um metal polivalente).

A grande novidade do artigo da Science é a obtenção pela primeira vez de um estado de temperatura negativa para um sistema de partículas com liberdade de movimentação, como um gás

A grande novidade do artigo da Science mencionado é a obtenção pela primeira vez de um estado de temperatura negativa para um sistema de partículas com liberdade de movimentação, exatamente como um gás. Isso só foi possível graças a uma tecnologia desenvolvida nos anos 1990 conhecida como aprisionamento de átomos em redes ópticas. Parece ficção científica.

Em primeiro lugar, é possível confinar um gás, em temperatura próxima do zero absoluto, dirigindo-se dois ou mais feixes de laser ao ponto de confinamento. Mais que isso, é possível formar uma rede de pontos de confinamento, uma espécie de cristal de luz, exatamente como se fosse uma rede cristalina, e em cada ponto colocar um pequeno aglomerado de átomos do gás. Foi essa a façanha de Schneider e colaboradores – a obtenção de um gás quântico ultrafrio, que depois foi organizado em uma estrutura cristalina de uma rede óptica.

Equipamentos ópticos
O confinamento de gases ultrafrios requer, além de campos magnéticos, uma complexa estrutura de equipamentos ópticos, como lentes, espelhos e raios laser. (foto: Wikimedia Commons/ Sergey100 – CC BY-SA 3.0)

Nas redes cristalinas dos materiais comuns, como o cristal de cloreto de sódio, o nosso sal de cozinha, a estrutura é mantida graças às interações atrativas entre os átomos. No caso das redes ópticas, a estrutura do cristal de luz pode ser estabilizada com interações atrativas ou repulsivas. É essa possibilidade que permite a obtenção de estado de temperatura negativa.

Na rede óptica há três tipos de energia: energia cinética, ou de movimento na rede; energia potencial, devido ao campo magnético que aprisiona o gás; e energia de interação entre os átomos do gás. As duas últimas podem ser controladas, e seus valores podem ser positivos ou negativos.

Os processos de manipulação dessas energias são complexos demais para que seus detalhes sejam discutidos aqui. O essencial é que os pesquisadores podem fazer com que a interação entre as partículas do sistema seja atrativa, o que resulta em pressão negativa. A consequência é que o gás tenderia à implosão. Mas isso não ocorre graças justamente à temperatura negativa e ao complexo arranjo estrutural do gás quântico.

Os resultados obtidos por esses pesquisadores apontam seriamente para a necessidade de exploração da termodinâmica para além dos limites de sua aplicabilidade usual. Como será exatamente a termodinâmica em gases quânticos ultrafrios? O conceito de temperatura será mesmo relevante?

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana