Um amigo meu anda preocupado com o que a neurociência talvez um dia seja capaz de fazer: ler pensamentos. Não, mais do que isso: ler intenções. Identificar diretamente no cérebro a vontade de ir ao cinema, aceitar uma proposta de casamento, dar um presente ou fazer um agrado. E também a vontade de mentir, trair a mulher, cometer homicídio. Tanta preocupação surgiu ao tomar conhecimento de uma descoberta da neurociência feita uns vinte anos atrás, e desde então confirmada de diversas formas.
A tal descoberta tem a ver com aquele papo de que a gente vê somente cinco anos mais tarde o brilho de uma estrela afastada cinco anos-luz da Terra. Lembra dessa história? Ela explica por que uma estrela que já morreu décadas atrás pode ainda brilhar por aqui na Terra. Pois bem: segundo o americano Benjamin Libet, badaladíssimo nos anos 80, a consciência dos nossos atos voluntários seria algo parecido: uma explicação criada pelo cérebro para algo — como a ordem de executar um movimento — que já aconteceu até meio segundo mais cedo.
Num dos experimentos mais simples e elegantes da história da neurociência, Libet pediu a seis voluntários que prestassem atenção à trajetória de um pontinho andando rapidamente em círculos numa tela, como se fosse o ponteiro de um relógio, enquanto um eletroencefalograma registrava a atividade elétrica sobre a região do cérebro que dá comandos de movimento aos músculos. A tarefa dos voluntários era moleza: eles deviam ficar lá prestando atenção ao pontinho e, se por acaso sentissem uma vontade súbita de mover um dedo, notar em que posição estava o pontinho no momento em que a vontade bateu. Pela posição do pontinho, Libet podia estimar o tempo decorrido entre a vontade e o movimento.
Resultado? A vontade bate uns dois décimos de segundo antes de o dedo mexer. Natural, não é? Primeiro dá vontade; depois você mexe o dedo. O que não estava no programa é que as regiões de planejamento motor do cérebro entram em atividade MUITO ANTES de “bater a vontade” de mexer um dedo — outros dois ou três décimos de segundo mais cedo do que a “vontade”. A implicação é que o cérebro não “sente vontade” de mexer um dedo, depois ativa o programa adequado, depois mexe o dedo. Ao contrário: ele primeiro ativa o programa adequado; dois ou três décimos de segundo mais tarde aquilo de alguma forma se transforma em “vontade”; e só outros tantos depois o dedo mexe, mesmo.
Desde então, vários laboratórios já comprovaram que a ordem para a execução voluntária de um movimento é dada no cérebro até mais de meio segundo antes de ser executada. E, como demonstrou Libet, ela pode ser detectada eletronicamente ao menos dois décimos de segundo ANTES que a própria pessoa tenha sequer consciência de que a ordem foi dada. Se você ainda está pensando que é pouco, não se engane: dois décimos de segundo são muita coisa. Tempo o suficiente, por exemplo, para bater palmas duas vezes. Ou apertar um botão.
Donde a preocupação do meu amigo. O intervalo significa que há tempo hábil para uma máquina “ler” no cérebro a intenção do movimento, e até intervir. A ordem para apertar o gatilho do revólver, por exemplo, poderia ser detectada por um sensor implantado no cérebro a tempo de algum dispositivo reagir e impedir o disparo. Seria a versão neurocientífica da situação concebida por Philip K. Dick e levada à telona por Steven Spielberg no filme Minority Report , onde três paranormais prevêem crimes iminentes com poucos minutos de antecedência, graças a alguma mutação genética vagamente explicada. No filme, são os paranormais que têm seus cérebros escaneados em permanência, deixando a polícia espiar diretamente suas visões de crimes que ainda não aconteceram, mas cuja intenção existirá e é lida, por sua vez, no cérebro dos futuros perpetradores.
O “sistema” poderia ser questionado quanto à invasão da privacidade cerebral humana, mas o filme voa muito além de qualquer preocupação ética desse tipo. A questão que realmente importa é outra: será a previsão, paranormal ou neurocientífica, 100% infalível? A Divisão Pré-Crime de Dick-Spielberg prende os ex-futuros criminosos com base na sua intenção de matar — antes que o crime seja consumado, naturalmente. Mesmo que o risco de erro pudesse ser eliminado, como “as estatísticas do Pré-Crime comprovam”, não haveria uma possibilidade de mudanças de curso imprevistas?
A ficção de Dick-Spielberg se dá em 2054, mas em alguns aspectos esse futuro já chegou. A leitura de intenções é uma realidade. Ao menos no cérebro de ratos e macacos, como demonstrou o brasileiro Miguel Nicolelis e sua equipe na Universidade Duke, nos EUA. Nesses bichos, os comandos para movimentar as mãos já podem ser detectados por eletrodos implantados na região motora do cérebro, e transmitidos a um equipamento que identifica a ordem a ser dada aos músculos e intervém, acionando por sua vez uma máquina que executa o movimento correspondente antes mesmo que o animal consiga contrair seus músculos.
Até que algo surpreendente ocasionalmente acontece. Provavelmente ao notarem que a máquina dará conta do recado, os ratos aprendem a abortar a execução do comando. O cérebro dá a ordem, sim, que é detectada pelos eletrodos e executada pela máquina. Mas não necessariamente pelo animal — que descobre que pode ficar preguiçosamente aguardando a chegada do braço mecânico que traz água à sua boca, sem mover um dedo. A ordem é dada. Só que o rato não faz nada.
Libet explica. Está certo que a ordem para o movimento é dada pelas regiões motoras do cérebro muito antes de se transformar, de alguma forma, em vontade de movimento, na sensação de “desejar” um movimento. Como o brilho da estrela morta distante, a sensação de livre-arbítrio chega somente depois que a ordem já foi dada. Mas, ao contrário da estrela já morta, não chega tarde demais. Mesmo a ordem já “desejada conscientemente” ainda pode ser abortada. Os voluntários de Libet conseguiam resistir à vontade de mover um dedo. Qualquer um de nós, aliás, consegue. E os ratos também.
Como a polícia Pré-Crime de Dick-Spielberg acaba descobrindo, é este o problema do seu sistema de detecção das intenções. E é também a solução para as preocupações do meu amigo. Eles não contavam com essa capacidade amplamente subapreciada do cérebro humano: o poder de mudar de idéia.
Libet B et al, 1983. Time of conscious intention to act in relation to onset of cerebral activity (readiness-potential): the unconscious initiation of a voluntary act. Brain 106, 623-642.
Libet B, 1985. Unconscious cerebral initiative and the role of conscious will in voluntary action. Behavioral and Brain Sciences 8, 529-566.
Sugestão de leitura:
McCrone J. Going Inside. A tour round a single moment of consciousness. Londres, Faber and Faber, 1999.
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia