Nós na família

Um dos desafios mais sutis e constantes do saber antropológico é o de relativizar a representação de pessoa reinante em nossa cultura. Constituída historicamente sob a forma ideológica do ‘indivíduo’, a pessoa ocidental porta qualidades ontológicas, simbólicas e pragmáticas muito peculiares quando comparada com as demais culturas. Essas qualidades são fundamentalmente as de ‘liberdade’, ‘igualdade’ e ‘autonomia’, essenciais na configuração dos valores que prezamos hegemonicamente como os melhores e os mais legítimos.

Ocorre-me tratar aqui – até por estar ministrando no Museu Nacional neste semestre um curso sobre a matéria – das implicações desse tema no estudo e compreensão do fenômeno da família. Entre as múltiplas ordens de englobamento das pessoas socialmente situadas, a família tem uma posição privilegiada, uma vez que não há reprodução humana sem o concurso de diversas pessoas num círculo relacional mínimo em que a concepção, o parto e os cuidados às crianças se processam.

A forma de fazê-lo pode variar enormemente – e já tratei da complexidade dos ‘sistemas de parentesco’ humanos em outra coluna recente. A essa trama que envolve os sujeitos na sua socialização primária costuma-se chamar de ‘família’. O termo pode abarcar círculos e tipos de relações muito variados, confundindo-se na nossa cultura com a forma nuclear que passou a prevalecer no Ocidente desde o final do século 18.

Essa família reduzida a um casal e seus filhos é, assim, um ideal recente e nem sempre completamente atingido na prática. Sua instituição foi concomitante com a do próprio individualismo como princípio estruturante da representação ocidental da pessoa. Essa nova família deveria ser a mais enxuta possível, justamente para poder se desincumbir da emergente tarefa de produzir ‘indivíduos’, ou seja, pessoas que se vissem e se sentissem como livres, iguais e autônomas. 

Autorretrato do pintor alemão Johann Friedrich Overbeck
Autorretrato do pintor alemão Johann Friedrich Overbeck com a esposa e o filho (dec. de 1820). A forma nuclear de família, reduzida a um casal e seus filhos, passou a prevalecer no Ocidente a partir do final do século 18, junto com a instituição do individualismo como princípio estruturante da representação ocidental da pessoa.

Uma parte fundamental dessa produção ideal passou a ser a percepção de que a sociedade e seus múltiplos círculos e dimensões não passavam de um acréscimo conjuntural à realidade básica dos indivíduos. O modelo da cidadania moderna, concebida como um ‘contrato social’, é uma das raízes mitológicas dessa representação desde o século 17.

Com isso, a família, por mais que continuasse essencial, também passou a ser concebida como uma ordem exterior aos indivíduos, sendo necessário dela se afastar exemplarmente para construir a vida pessoal própria, a carreira afirmativa no mundo característica de um ser autônomo. Pelo menos até o momento de constituir uma nova família, com casamento e procriação; desencadeando outro lance dessa contraditória condição, com os desafios complexos de preservação da autonomia numa trama sempre fortemente relacional.

Sacrário original e permanente

A experiência analítica antropológica demonstra, no entanto, que a relacionalidade intrínseca da família se afirma na vasta maioria das culturas, prevalecendo sobre as trajetórias e identidades pessoais – nunca imaginadas como ‘individuais’. E, mais do que isso, demonstra que, mesmo em nossas sociedades, e a despeito do vigor da ideologia do individualismo, o pertencimento familiar continua sendo uma dimensão crucial da experiência social. 

A despeito do vigor da ideologia do individualismo, o pertencimento familiar continua sendo uma dimensão crucial da experiência social

As palavras para descrever essas afirmações são muito traiçoeiras. Falar de pertencimento, de englobamento, de relacionalidade transmite uma imagem fraca da ideia central em jogo. Parecem sugerir apenas que os indivíduos, autônomos como são, não podem prescindir dessas outras relações e integrações e que o fazem por força de circunstâncias relativamente fortuitas e frequentemente abusivas. E, por isso mesmo, algumas obras antropológicas importantes insistem numa demonstração mais exata do processo que se encontra aí em jogo.

Em artigo recente, o importante antropólogo estadunidense Marshall Sahlins reaviva a consciência dessa condição relacional profunda da vida familiar, revisando uma ampla gama de testemunhos etnográficos, de estudos sobre outras sociedades. Propõe ou retoma de outros autores diversas expressões que podem trazer à luz a importância dessa relativização da condição de ‘indivíduos’ na trama familiar. Fala de ‘mutualidade de existência’, de ‘pertencimento intersubjetivo’ e de ‘participação intersubjetiva’, buscando assim sublinhar o fato de que as pessoas encontram-se sempre imersas em uma dimensão identitária, experiencial, que ultrapassa de muito sua eventual condição de ‘indivíduos’: a da família ou parentesco.

O ponto também é explorado pelo antropólogo português João de Pina-Cabral, a partir de sua rica trama de estudos diretos em Portugal, Macau, Brasil e na África meridional. A locução que nos propõe é a de ‘identidades continuadas’, que encontra e descreve, não em longínquas sociedades tribais, mas no coração mesmo da vida urbana metropolitana moderna. Ele sublinha com mais nitidez a dimensão temporal, de comum pertencimento entre diversas gerações.

Sahlins faz bem em evocar um personagem fundamental da história do pensamento antropológico, o filósofo e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl, que, nas primeiras décadas do século 20, investiu um grande esforço reflexivo na demonstração de que o pensamento humano não opera apenas de acordo com os preceitos da lógica formal da tradição ocidental, mas que, na verdade, se funda em princípios de construção das identidades e dos valores altamente integrados, englobantes, a que chamou de ‘princípio da participação’.

Mesmo onde reina hegemônica a visão de mundo moderna, racionalizada e individualizada, uma relacionalidade institutiva, principial, sempre está em ação

Enfatizava com isso que, mesmo onde reina hegemônica a visão de mundo moderna, racionalizada e individualizada, uma relacionalidade institutiva, principial, sempre está em ação. Cada ente, ação ou valor se encontra sempre entranhado em ordens de significado que os ultrapassam e que não obedecem à delimitação dos conceitos nítidos e unívocos.

‘Nós’ constituímos os ‘nós’ dessa intensa trama de papéis, experiências e significados que constituem as famílias. Por mais que nos representemos autônomos ou autonomizados em relação a elas, sempre portamos uma dimensão de participação, pertencimento, englobamento e entranhamento que nos mantêm no interior daquela configuração.

Em outro texto, cheguei mesmo a explorar as conotações religiosas de que o pertencimento pode frequentemente se cercar, na referência a esse sacrário original de onde nunca saímos inteiramente. Essa característica não é apenas um efeito sentimental entre outros; é uma força fundamental que deve ser analisada e compreendida em seus permanentes efeitos sobre a vida social como um todo.

Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sugestões para leitura
Carsten, Janet (org.) Cultures of relatedness: New approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

Duarte, Luiz F. D. ‘O sacrário original – Pessoa, família e religiosidade’. Religião & Sociedade, vol. 26, n.2, p.11-40, 2006.

Duarte, Luiz F. D. ‘Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família’. In: Ribeiro, Ivete e Ribeiro, Ana Clara (orgs.). Família e sociedade brasileira: Desafios nos processos contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1995.

Pina-Cabral, João de. O homem na família: Cinco ensaios de antropologia. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003.

Sahlins, Marshall. ‘What kinship is (part one)’. Journal of the Royal Anthropological Institute, vol.17, n.1, p.2-19, 2011.