O dente da preguiça gigante

Quando recebi de Mário Dantas (Universidade Federal de Minas Gerais) o trabalho que ele publicou com outros colegas no periódico Quaternary International sobre um dente de uma preguiça gigante extinta modificado pela ação humana, logo imaginei que esse assunto seria bem interessante para a coluna Caçadores de fósseis. Quantas vezes se tem a chance de discutir a interação entre animais extintos há milhares de anos e as primeiras levas da nossa espécie que chegaram à América do Sul?

No entanto, logo percebi que a problemática é bem maior do que eu supunha. Não apenas por suscitar a questão de como se comprova que um dente ou algum fóssil foi realmente manuseado pelo homem há milênios, mas também por envolver temas complexos, como até quando viveram os integrantes de algumas espécies extintas.

Poço redondo

O exemplar pesquisado por Mário Dantas e colegas foi coletado em 2010 na fazenda São José, situada no município de Poço Redondo, em Sergipe. O depósito é do tipo tanque, uma depressão natural formada por processos físicos e erosão química a partir de fraturas preexistentes na região.

Os sedimentos que preenchem esse tipo de depressão foram carreados devido a chuvas que, quando bem intensas, geravam um fluxo de água que também podia transportar restos de animais mortos presentes nos arredores da depressão. Aliás, justamente nesse tipo de depósito encontra-se grande parte dos fósseis atribuídos à chamada megafauna, que vivia em diferentes regiões do nosso planeta, particularmente durante o Pleistoceno (entre 1,8 milhão e 11,5 mil anos atrás).

Depósito em Poço Redondo
O dente da preguiça gigante foi encontrado em um depósito em Poço Redondo (Sergipe) formado por uma depressão natural que abriga sedimentos carregados pela água da chuva. (foto: Mário Dantas)

Apenas para relembrar, a megafauna é composta por animais geralmente de grande proporção que conviveram com a espécie humana e se extinguiram ao final da última era do gelo, entre 12 mil e 10 mil anos atrás. Entre os grupos mais famosos se destacam os mamutes, as preguiças gigantes e os tatus de grandes dimensões.

Processos naturais ou ação humana?

Entre os diversos fósseis coletados em Poço Redondo, um chamou bastante a atenção dos pesquisadores: um dente. Ao se depararem com esse exemplar, Mário e colegas notaram que ele estava incompleto, sem, no entanto, apresentar uma quebra natural, que poderia ter resultado de diversos processos físicos antes mesmo da preservação do material.

Quebras poderiam ter ocorrido, por exemplo, durante o transporte do dente para dentro do tanque. Porém, quando isso acontece, as partes quebradas exibem uma superfície bem característica, bastante irregular, sem apresentar qualquer ranhura ou estrutura orientada.

Todo o dente é bastante liso, o que sugere que foi aplainado, algo incompatível com um processo natural

Ou então o dente poderia ter sofrido a ação de pisoteamento, devido ao confinamento de animais em uma pequena área. Sem espaço e com mortes ocorrendo, eles acabam pisando nas carcaças. Tal situação pode ser observada hoje em dia nas savanas africanas em períodos de seca, quando a fauna local acaba se concentrando perto de corpos d’água, com muitos indivíduos e pouco espaço. Esse tipo de quebra também exibe marcas características: ranhuras sem qualquer direção preferencial.

O dente de Poço Redondo, ao contrário, é marcado por sulcos paralelos situados na sua ponta e nas suas laterais. Além disso, todo o dente é bastante liso, o que sugere que foi aplainado, algo incompatível com um processo natural. Por último, foram encontrados junto com esse exemplar artefatos líticos, o que é evidência direta da ação humana.

Dente de preguiça gigante
Além de ser bastante liso, o que sugere que foi aplainado, o dente estudado é marcado por sulcos paralelos situados na sua ponta e nas suas laterais, como mostram os detalhes da figura. (foto: Mário Dantas)

Uma das questões intrigantes que Mario e seus colegas tiveram que desvendar é a qual espécie o dente pertencia. Apesar de o fóssil estar incompleto, os pesquisadores puderam identificar camadas com cimento, ortodentina e ortodentina modificada. A análise dessas camadas mostrou que o dente pertence ao grupo Megatheriidae, formado pelas preguiças gigantes.

Das duas espécies de preguiça gigante existentes em solo brasileiro, Megatherium americanum foi registrada apenas na região Sul do país, enquanto Eremotherium laurillardi tem distribuição em todo o território nacional, incluindo o Nordeste. Logo, não é preciso pensar muito nos motivos que levaram aos autores a atribuir o material encontrado a Eremotherium laurillardi

Mas a descoberta ainda tem outras implicações…

Idade do fóssil

Ao pesquisar sobre artefatos líticos encontrados no estado de Sergipe, os registros mais antigos são atribuídos à cultura Canindé. Com base em datações realizadas por meio do método do Carbono 14, foi estabelecido que essa cultura estava desenvolvida entre 8.950 e 5.570 anos atrás – idade estimada também para o dente.

A espécie de preguiça gigante pode ter vivido até o Holoceno e interagido com a população humana existente naquele tempo

Diante desses dados, Mário e colegas chegaram a duas alternativas. Ou a espécie de preguiça gigante viveu até o Holoceno (que se estende de 11,5 mil anos atrás aos dias atuais) e interagia com a população humana existente naquele tempo, ou então a chegada da espécie humana à América do Sul é mais antiga do que se supõe, devendo ter ocorrido há cerca de 15 mil anos – idade já proposta por alguns autores, mas não aceita pela maioria dos pesquisadores.

Sem querer me aprofundar nessa questão (que poderia ser o tema de outra coluna), o período exato da chegada da espécie humana à América do Sul tem sido foco de uma discussão intensa. As evidências físicas diretas são representadas por um crânio encontrado em Lagoa Santa (Minas Gerais). Esse exemplar, ao qual se deu o nome informal de Luzia e que se encontra exposto no Museu Nacional/UFRJ, teve sua idade determinada entre 11 mil e 11,5 mil anos.

Resta, agora, que os pesquisadores deem prosseguimento a essa escavação na região de Poço Redondo, em Sergipe. Se a burocracia deixar, eles certamente farão diversas novas descobertas, que podem elucidar essa interessante questão que é a interação entre a nossa espécie e a megafauna.

Obrigado ao Mário pelo envio do trabalho.

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
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Gotas de chuva preservadas em rochas de 2,7 bilhões de anos revelaram informações sobre a atmosfera do nosso planeta durante o Pré-Cambriano. Em estudo publicado com destaque na Nature, Sanjoy Som (Universidade de Washington, Seattle, Estados Unidos) e colegas compararam a forma e a profundidade da impressão de gotas de chuva encontradas em tufos vulcânicos na África do Sul com as marcas deixadas por gotas nas condições atuais e concluíram que a densidade do ar naquela época era duas vezes menor que a de hoje.

Dando prosseguimento à pesquisa dos mesossauros, Graciela Piñeiro (Faculdade de Ciências, Montevidéu, Uruguai) e colegas acabam de publicar na Comptes Rendus Palevol um estudo onde fazem a revisão anatômica do crânio de Mesosaurus com base em material coletado no Uruguai. Entre as novas descobertas está a presença de uma fenestra temporal inferior, que havia sido inferida nesses animais pelo pesquisador alemão Friedrich von Huene (1875-1969) em 1941, mas acabou sendo descartada em trabalhos subsequentes.

Também na Comptes Rendus Palevol foi publicado por Ariel Méndez (Museu Paleontológico de Bariloche, Argentina) e colegas o primeiro registro do grupo Megaraptora no Brasil. Trata-se de uma vértebra caudal descoberta na Bacia Bauru que exibe as características desse grupo de dinossauros carnívoros originalmente encontrados em depósitos de idade cretácea na Argentina.

Rafael Costa da Silva (Serviço Geológico do Brasil, Rio de Janeiro) e colegas estudaram o registro de pegadas fósseis formadas durante a parte superior do Permiano (entre 260 milhões e 252 milhões de anos atrás). O material, procedente de duas localidades – uma em São Paulo e outra no Paraná –, revelou a existência de uma diversidade maior de vertebrados durante esse período do que se supunha até então, incluindo formas que não tinham sido registradas no Brasil. O artigo foi publicado pelo Journal of South American Earth Sciences.

Agustín Martinelli (Centro de Pesquisas Paleontológicas L.I.Price, Uberaba, Minas Gerais) e colegas redescreveram exemplares de crocodilomorfos encontrados em depósitos cretáceos na Argentina e considerados representantes da espécie brasileira Peirosaurus torminni. Eles concluíram que os mesmos pertencem a uma nova espécie, denominada Gasparinisuchus peirosauroides. Publicado na Cretaceous Research,  o estudo sugere uma similaridade menor entre as faunas cretáceas do Brasil e da Argentina do que se supõe.

Um novo dinossauro herbívoro pertencente ao grupo dos hadrossauros, Kundurosaurus nagornyi, foi descrito a partir de centenas de ossos encontrados em rochas do Maastrichtiano (cerca de 68 milhões de anos atrás) na localidade de Kundur, região de Amur, oeste da Rússia. Liderada por Pascal Godefroit (Instituto Real de Ciências Naturais da Bélgica, Bruxelas, Bélgica), a pesquisa, publicada na Plos One, revelou que havia uma grande diversidade de hadrossauros nessa parte da Rússia até a China, o que sugere uma dispersão de formas entre a América do Norte e a Ásia no final do Cretáceo.