Ao chegar ao evento, apoiado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF, na sigla em inglês) e realizado na Universidade Cayetano Heredia em 24 e 25 de agosto deste ano, entendi tudo e fiquei de cabelo em pé: o Brasil propôs – e o Peru aceitou – a construção de até seis grandes represas hidrelétricas nas encostas amazônicas da Cordilheira dos Andes, com projeto e execução de empresas brasileiras e financiamento do BNDES. O Brasil compraria cerca de 80% da energia produzida.
O primeiro projeto, que custaria uns quatro bilhões de dólares, seria o de Inambari, construído na confluência dos departamentos (estados) de Madre de Dios, Cuzco e Puno e com potência instalada de 2.000 megawatts (MW). Inambari seria, em termos de geração de energia, a maior barragem do Peru e a quinta maior da América Latina, com uma área de inundação de mais de 46.000 hectares. Posteriormente, seriam construídas as barragens de Sumabeni (com 1.074 MW de potência), Paquitzapango (2.000 MW), Uru-bamba (940 MW), Vizcatán (750 MW) e Chuquipampa (800 MW). O pacote todo (com as seis obras) sairia supostamente por uns 16 bilhões de dólares.
Mais perguntas que respostas
Durante o evento, houve momentos e ausências notáveis. A Embaixada do Brasil, convidada com um mês de antecedência, avisou na véspera que não poderia enviar representante. Membros de comunidades da área afetada indagaram por que não se aproveitava a forte declividade dos Andes para colocar centrais hidrelétricas em série, a fio d’água: ninguém soube responder. Perguntas simples como “Isso já está decidido?” ou “Quem decidiu? Qual ministério assinou?” também ficaram sem resposta. Os hidrólogos presentes perguntaram sobre a série histórica de vazão dos rios a serem represados: não há. Só existem dados para 2008! A rede de monitoração foi desmantelada durante os governos neoliberais anteriores.
Portanto, é impossível prever por quanto tempo as represas poderão gerar energia até serem irremediavelmente assoreadas. Muito menos estimar o impacto das mudanças climáticas globais sobre seu prazo de validade.
Cerca de 150 km da recém-asfaltada estrada transoceânica (na foto) serão alagados pelo reservatório da hidrelétrica de Inambari (foto: Wendorf Rodríguez).
Como se não bastasse, Inambari vai alagar boa parte de um parque nacional situado em área de megadiversidade e deslocar cerca de 900 famílias de diferentes grupos indígenas. Seu reservatório incluirá áreas de rio atualmente sujeitas a intensa garimpagem de ouro e, portanto, contaminação por mercúrio e – a cereja no sundae – irá alagar cerca de 150 km da estrada transoceânica, recém-asfaltada, em um belo exemplo de eficiente coordenação intersetorial.
Também fiquei sabendo que o Ministério do Meio Ambiente do Peru tem apenas um aninho de vida. Palmas para ele – e figas, patuás, água benta, shalom e tudo mais, porque ele vai precisar.
Eu não sabia. E você, sabia?
Curiosamente, essas importantes notícias foram muito pouco divulgadas no Peru. E no Brasil? Leio jornal todo dia, me interesso pelo assunto e não tinha registro de nada disso.
Ao voltar para nosso novo-rico e novo-imperialista país, corri atrás do prejuízo e descobri que os presidentes dos dois países se encontraram no Acre em abril de 2009 e assinaram diversos acordos de cooperação. O presidente Lula, falando em um fórum de empresários do Brasil e do Peru, declarou que o governo brasileiro tem interesse em financiar, por meio do BNDES, a parceria entre a Eletrobras e a empresa de energia do Peru para a construção de hidrelétricas (Isabel Braga, O Globo Online, 28/04/09). Na mesma fonte, lemos en passant que, ainda em 2008, o presidente peruano Alan García mostrou a disposição do país em construir seis hidrelétricas em seu território, para fornecimento de energia ao Brasil e com financiamento do BNDES.
Fuçando um pouco mais a web, encontro sem dificuldade um texto de Marc Dourojeanni, ex-professor e decano da Faculdade Florestal da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru, e Diretor Geral Florestal desse país, publicado em 04/07/2009 no jornal A Gazeta On-line, do Acre, que nos informa que a iniciativa já percorreu um longo caminho que incluiu a instalação, no Peru, de duas novas empresas formadas por consórcios brasileiros. A primeira é a Empresa de Generación Eléctrica Amazonas Sur, formada por empresas privadas de estudos lideradas pela brasileira Engevix, e a segunda é a Inambari Geração de Energia, que inclui Eletrobrás, Furnas e OAS.
Informações divulgadas pelas próprias empresas anunciam que a Empresa de Generación Eléctrica Amazonas Sur já estaria desenvolvendo os estudos para a obra do Inambari, com base em uma resolução ministerial de junho de 2008. A Inambari Geração de Energia, por sua vez, já contaria com um crédito de 2,5 bilhões de dólares do BNDES para trabalhar.
Seriam essas as “empresas de energia do Peru”? Não devem ter tido muito trabalho. Afinal, as seis hidrelétricas foram escolhidas dentro da lista de 14 pontos prioritários para geração de hidreletricidade na Amazônia Alta do Peru, apontados em estudos dos anos 1970 financiados pelo governo alemão (por meio da agência de cooperação GtZ) e pelo Banco Mundial.
Se este é o retrospecto, então anunciar em grande pompa, em 28/04/09, que os presidentes dos dois países assinaram um memorando para a criação de uma comissão de estudos da viabilidade do projeto é, digamos, de um humor duvidoso, para ser bem-educado. Tudo já está resolvido, dimensionado, financiado, partilhado e alguém ainda duvida da viabilidade? Fala sério! O resto é formalidade, especialmente os estudos ambientais. Serão realizados e não mudarão absolutamente nada, mesmo porque as obras já estarão em curso, como as das hidrelétricas do rio Madeira.
Resolvi então pesquisar – ai de mim – datas posteriores a 28/04/09 e soube – maldita internet! – que, em 29/04/09, nosso presidente, ainda no Acre, reclamou das exigências ambientais para a realização ou finalização de obras públicas, citando o caso da perereca que teria paralisado obras importantes por 7 meses à espera de um veredicto sobre sua eventual condição de espécie em extinção. Entendi: se estamos parasitando o Peru é culpa da perereca. Pelo jeito, lá não há pererecas, ou lá elas não têm porta-voz. Naturalmente, as tais obras tinham muitas outras condicionantes ambientais, mas essas não arrancariam risos da plateia-empresária.
E precisava mesmo?
O Brasil tem hoje cerca de 70 usinas hidrelétricas com mais de 20 anos, como a de Tucuruí, inaugurada em 1984 no Pará. A troca das turbinas dessas usinas poderia contemplar 60% da meta de aumento na oferta de energia elétrica para o país estabelecida pelo PAC (foto: Sócrates Arantes/ Eletronorte/ Agência Brasil).
E o texto podia ficar por aqui. Se já doeu muito, feche a página, porque o pior está por vir. Parece que não precisava de nada disso. Isso mesmo. Não precisamos transferir a nossos vizinhos mais vulneráveis vultosos passivos socioambientais e bilionárias dívidas e ainda arriscar ficar às escuras se tudo der errado, como pode dar.
Em reportagem de Eduardo Geraque publicada em 27/04/07 no jornal Folha de São Paulo, Célio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e autor de um dos capítulos do Dossiê Energia, lançado em 26/04/2007 pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, sustenta que “o Brasil não tem necessidade de construir mais hidrelétricas para atingir a meta do PAC de aumentar a oferta de energia elétrica em 12.300 megawatts até 2010”. “O Brasil tem hoje aproximadamente 70 usinas com mais de 20 anos que poderiam sofrer uma repotenciação [troca das turbinas]”, explica.
Se isso fosse feito, mais ou menos 60% da meta do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) já seriam contemplados: “O custo é bem menor comparado à construção de novas usinas, que absorvem 60% dos investimentos somente em obras civis”, lembra. Os 40% restantes da meta do PAC poderiam ser obtidos sem nenhuma nova obra civil: “O próprio governo assume que as perdas do setor elétrico nacional hoje, desde a transmissão até chegar ao domicílio ou ao eventual consumidor industrial, são da ordem de 15%.”
Para Bermann, se houvesse um esforço para que o desperdício fosse reduzido para 10%, isso já seria suficiente para fechar a conta. Os processos de repotenciação renderiam quase 8.000 megawatts e a redução do desperdício, mais 4.850 megawatts. Segundo Bermann, esse processo de repotenciação não ocorreu até hoje no país por causa da cultura das megaobras: “Parece que o governo prefere construir grandes usinas, porque elas acabam dando mais visibilidade.”
E seus megaorçamentos financiam muitas campanhas.
Ecológicas, é claro.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
18/09/2009