Para acabar com a choradeira na cozinha

É batata — ou melhor, é cebola: corte uma em pedaços para fazer o refogado e em poucos segundos as lágrimas rolam bochechas abaixo. Mas se a receita mandar apenas tirá-la de sua embalagem natural e jogá-la inteira no cozido, não há o menor problema. Não precisa ser Sherlock Holmes para deduzir onde está a causa de toda a choradeira: no corte da cebola.

Também é o corte, diga-se de passagem, que perfuma o refogado. Cortar, amassar ou triturar alhos e cebolas resulta na destruição de milhões de células, que liberam seu conteúdo: é aquele caldinho que suja a faca. Nele estão, entre outras coisas, um sulfóxido do aminoácido cisteína e enzimas chamadas alinases, que provocam a transformação do sulfóxido em ácido propenilsulfênico. Aquele perfume maravilhoso do refogado vem a seguir, com a transformação espontânea do ácido propenilsulfênico em tiossulfinato: este é o mocinho cheiroso da estória.

O vilão ardido é outro. O tiossulfinato cheiroso não é o único resultado da reação desencadeada pela destruição das células. O ácido propenilsulfênico, dizia-se, também se transforma espontaneamente em propanotial-S-óxido — este sim o fator lacrimogêneo volátil que irrita os olhos e dispara o reflexo de produção de lágrimas em abundância. São tantas que o duto lacrimal, que despeja para dentro do nariz as lágrimas constantes que limpam e lubrificam os olhos, não dá mais conta. Resultado: transbordamento de lágrimas. O que é a melhor coisa que poderia acontecer aos seus olhos, já que você insistiu em expô-los a uma substância irritante…

Aqui você já deve estar se perguntando: se tanto alhos como cebolas, parentes próximos em espécie e cheiro, têm sulfóxido de cisteína que é transformado pela alinase em ácido propenilsulfênico que vira espontaneamente tanto o cheiroso tiossulfinato quanto o ardido fator lacrimogêneo propanotial-S-óxido, por que diabos espremer alho não faz chorar? Ah… A resposta tradicional era que “por alguma razão, no alho cortado o ácido propenilsulfênico se transforma espontaneamente só no cheiroso tiossulfinato”. Ô desculpa fajuta!

Um grupo de japoneses acaba de publicar, na revista Nature de 17 de outubro, uma resposta muito melhor. A primeira parte da resposta é que o tal do ácido propenilsulfênico NÃO se transforma espontaneamente no fator lacrimogêneo coisíssima nenhuma. A segunda parte é que quem faz isso é uma outra enzima, até então desconhecida, que apenas as cebolas possuem, e que os pesquisadores tiveram a original e conveniente idéia de nomear — adivinhem! — sintase do fator lacrimogêneo.

Ou seja: o ácido propenilsulfênico formado quando se destroem as células de alhos e cebolas se transforma espontaneamente, sim, no tiossulfinato que dá o perfume ao refogado. Mas os olhos só ardem com as cebolas porque só elas possuem a tal da segunda enzima que converte o mesmo ácido em fator lacrimogêneo.

O bacana é que isso quer dizer que dá, em princípio, para acabar com a produção do vilão fator lacrimogêneo sem mexer no tiossulfinato — que é realmente o mocinho da estória: além de perfumado, é ele o responsável por todas as outras boas razões para se comer cebolas. O tiossulfinato é antiinflamatório, antialergênico, antiasmático, antidiabético, anti-hipertensivo…

E para acabar com a choradeira na cozinha, os pesquisadores sugerem nada menos que a criação de uma cebola transgênica sem a sintase do fator lacrimogêneo, que seria tão perfumada quanto as outras porque a alinase e a produção de tiossulfinato permaneceriam intocadas. Simples, não é?

Enquanto outros pesquisadores têm coisas mais importantes a fazer do que colocar cebolas-sem-sintase-do-fator-lacrimogêneo nos supermercados, a gente continua com os velhos truques para cortar cebolas sem chorar. Um truque (comprovado pelo Cérebro Nosso !) é colocar as cebolas na geladeira antes de cortar, já que o frio inibe a atividade das enzimas. Outros são cortar cebolas embaixo d’água (o que não é nada prático) ou na frente de um ventilador que sopre os vapores para longe de você; colocar óculos de mergulho e tapar o nariz com um pregador de roupa (senão o fator lacrimogêneo chega aos olhos pelo lado de dentro!); usar uma faca extremamente afiada, para diminuir a destruição das células… e tem até quem defenda um palito de fósforo preso nos lábios.

E diz o meu marido (míope, e que gostava de tirar onda de cozinheiro antes de a gente se casar) que o melhor remédio de todos é usar lentes de contato. Faz sentido, já que boa parte da córnea fica protegida. Já que ele diz isso, eu digo outra coisa: o melhor remédio para eu não chorar cortando cebolas é… pedir para ele cortar por mim!

Fonte: Imai S, Tsuge N, Tomotake M, Nagatome Y, Sawada H, Nagata T, Kumagai H (2002). An onion enzyme that makes the eyes water. Nature 419, 685.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia