Parasitas, evolução e sexo

Exatamente 50 anos atrás, em 7 de maio de 1959, o físico inglês Charles Percy Snow (1905-1980) proferiu sua notória e fatídica conferência “As duas culturas”. A tese era de que ciência e humanidades constituíam atividades estanques, líquidos imiscíveis. Acho que a conferência acabou sendo uma profecia autorrealizável, ou seja, uma crença que, de tanto ser divulgada e repetida, acabou sacramentada e intrinsecamente provocou sua aceitação e concretização.

A coluna Deriva Genética é total e irrevogavelmente dedicada à tarefa de mostrar que, como o rei, C.P. Snow estava nu. A separação entre arte e ciência é um artefato da academia. Longe de serem diferentes, elas são maneiras complementares e interativas de o ser humano lidar com o universo e com sua própria existência.

Feito este breve prolegômeno, passemos à coluna propriamente dita, que irá abordar outra interação, desta vez entre parasitas e hospedeiros. Nessa relação, dois organismos com constituições genéticas muito diferentes vivem juntos, um dentro do outro, célula dentro de célula, ou mesmo genoma dentro de genoma. As informações genéticas desses “parceiros” se expressam lado a lado, numa interação que pode durar um longo tempo.

O mundo da Rainha Vermelha


 

 

Os parasitas evoluem constantemente para maximizar sua infecciosidade e otimizar sua virulência, enquanto os hospedeiros tentam, por sua vez, evoluir rapidamente para minimizar essas propriedades dos parasitas. Se um deles conseguir uma vantagem evolucionária significativa, isso poderá levar à extinção do outro.

Assim, parasitas bem sucedidos e hospedeiros bem sucedidos estão sempre em um “equilíbrio” competitivo, no qual não há perdedores nem vencedores definitivos, apenas a coevolução constante que mantém o status quo. Esse equilíbrio foi denominado de a “dinâmica da Rainha Vermelha” (ver figura ao lado).

Aliás, o princípio da Rainha Vermelha, que já foi verificado experimentalmente em vários estudos, me remete a um de meus filmes prediletos: O Leopardo (1963) do italiano Lucchino Visconti (1906-1976), baseado no livro homônimo de Giuseppe Di Lampedusa (1896-1957). Nele, Burt Lancaster, fazendo o papel do Príncipe de Salinas, reflete sobre a revolução republicana na Sicília dizendo: “As coisas têm que mudar, para que permaneçam as mesmas”.

À primeira vista, a coevolução de parasitas e hospedeiros pode não parecer bem balanceada, pois sabemos que os parasitas evoluem mais rapidamente do que os hospedeiros, por três motivos: maior tamanho populacional, tempos de geração mais curtos e elevadas taxas de mutação. Por essa lógica, os parasitas deveriam ganhar sempre.

Entretanto, sabemos que isso não é o que ocorre em populações naturais. A solução para esse aparente paradoxo foi fornecida pela primeira vez pelo grande evolucionista inglês William D. Hamilton (1936-2000), que mostrou que o equilíbrio podia ser mantido se os hospedeiros adotassem a reprodução sexuada.

A recombinação genética possibilitada pela reprodução sexuada aumenta a taxa de evolução pela criação de novas combinações gênicas, tornando cada hospedeiro um ambiente singular para o parasita e dificultando a sua adaptação. Esse mecanismo é tão eficiente que permite que o hospedeiro tenha resistência natural à infecção por parasitas que ele sequer encontrou. A partir desse raciocínio, Hamilton propôs que, evolucionariamente, o sexo emergiu como uma estratégia para lidar com parasitas e que representa uma real vantagem para as espécies.

A seleção sexual e os parasitas
“The sight of a feather in a peacock’s tail, whenever I gaze at it, makes me sick!”, escreveu Darwin em uma carta em 1887 (tradução: a visão de uma pena da cauda de um pavão me deixa doente).

Pavão macho (Pavo cristatus), exemplo máximo da seleção sexual, proposta por Charles Darwin em 1871 como estratégia evolucionária de competição entre os machos pelas fêmeas disponíveis para acasalamento. Características favorecidas por seleção do sexo oposto são chamados de “ornamentos”. Exemplos são as decorações multicolores dos peixes, o canto e a plumagem dos pássaros etc. As vantagens reprodutivas desses ornamentos têm de superar a desvantagem causada pelo aumento de visibilidade, que torna os machos mais facilmente localizáveis por predadores (foto: Wikimedia Commons).

Desde a publicação de seu importante livro A descendência do homem e seleção em relação ao sexo em 1871, Darwin vinha tentando, sem sucesso, conseguir uma explicação para o fato de os machos de várias espécies de aves apresentarem uma plumagem colorida e volumosa, que teoricamente deveria ter o efeito deletério de torná-los presas fáceis para predadores. O pavão é o exemplo mais flórido desse fenômeno.

O risco elevado tinha de ser contrabalançado com o lucro de um aumento considerável de atração sexual desses machos. Tal observação era análoga às características de outras espécies nas quais se observava este paradoxo da “seleção sexual”, como o coaxar dos sapos, o tamanho da galhada dos alces ou o colorido dos peixes. Por que as fêmeas prefeririam esses machos tão enfeitados?

O dilema persistiu até que em 1982 Hamilton, junto com M. Zuk, postulou a hipótese de que os caracteres exuberantes de seleção sexual constituíam uma demonstração de boa saúde, uma prova de que os animais estavam livres de parasitas. Os autores mostraram que entre as aves havia uma correlação negativa significativa entre a infestação por parasitas (nematódeos e protozoários) e a exuberância da plumagem e do canto dos machos. Esses resultados são compatíveis com um modelo de seleção sexual no qual as fêmeas das aves escolhem parceiros sexuais pelo escrutínio de características físicas cuja expressão completa depende de saúde e vigor.

Antropomorficamente falando – o que sempre é arriscado –, ao optar por machos ornamentados, as fêmeas estão na verdade escolhendo machos não parasitados, isto é, com genes de resistência, que serão transmitidos aos seus filhotes. Esta é mais uma demonstração do papel fundamental dos parasitas na evolução dos hospedeiros.

O Darwin do século 20

William D. Hamilton (1936-2000) o grande biólogo evolucionista inglês do século 20, responsável pela hipótese de que os parasitas são responsáveis pela emergência do sexo e pelo desenvolvimento da evolução sexual. Paradoxalmente, o cientista faleceu com malária aguda, causada pelo parasita Plasmodium falciparum (foto: WIkimedia Commons).

Além de suas contribuições seminais para o entendimento da evolução do sexo e da seleção sexual, Hamilton desenvolveu uma brilhante e rigorosa teoria matemática das bases genéticas e evolucionárias do altruísmo por meio da seleção de parentes (kin selection) e aptidão inclusiva (inclusive fitness), conceitos que infelizmente têm sido usados abusivamente pela sociobiologia e pela psicologia evolucionária.

Seu brilho foi tal que o britânico Richard Dawkins, outro grande evolucionista, escreveu que “W.D. Hamilton é um bom candidato para o título do darwinista mais gabaritado desde o próprio Darwin”.

Acontece, às vezes, de grandes homens de ciência cometerem grandes erros. Sempre agressivo e polêmico, Hamilton desenvolveu durante a década de 1990 a teoria excêntrica e idiossincrática de que o vírus HIV havia evoluído a partir de vacinas orais de poliomielite contaminadas, usadas na década de 1950. Em 2000 ele organizou uma excursão científica ao Congo para investigar sua hipótese. Durante a viagem ele contraiu malária, que evoluiu para forma cerebral. Hamilton foi transferido de volta à Inglaterra para tratamento, mas faleceu após seis semanas de hospitalização, com uma hemorragia cerebral.

É triste e curioso que esse grande evolucionista, que tanto contribuiu para o entendimento do papel evolucionário dos parasitas, tenha sucumbido exatamente ao Plasmodium falciparum, um parasita de extraordinária relevância evolucionária, pois acompanha a humanidade desde os seus primórdios.

Hamilton foi enterrado na Inglaterra. Nisso, não foi obedecido seu desejo, expresso no artigo intitulado “My intended burial and why” [‘Meu enterro desejado e por quê’], de ser enterrado em uma floresta brasileira.

“Deixarei um pedido no meu testamento para que meu corpo seja carregado para o Brasil e para essas florestas […] e estes grandes besouros Coprophanaeus me enterrarão. Eles penetrarão em minha carne e a comerão; na forma de cria deles e minha, escaparei da morte. […] Zumbirei no lusco-fusco como uma grande mamangaba. Serei muitos, zumbindo como um enxame de motocicletas, alçarei voo, corpo ao lado de corpo no ar, voando na selva sob as estrelas, suspensos sob esses belos élitros [asas dos coleópteros] que teremos nas nossas costas. Finalmente, também reluzirei como um escaravelho violeta sob uma pedra.”
Essa é a ideia de imortalidade de um verdadeiro evolucionista…

Genomas de parasitas
Como vimos, seres humanos e seus parasitas, muito especialmente o Plasmodium, estão há milênios aprisionados no processo coevolucionário antagonístico constante da Rainha Vermelha.

Mas a nossa espécie é a única que tem consciência da própria evolução. E ela desenvolveu uma nova maneira mais rápida e eficiente de evoluir, por meio da cultura.

A evolução cultural é muito mais rápida e eficiente que a biológica, pois não depende de transmissão genética vertical. Em vez disso, ela recorre ao uso da linguagem e do aprendizado para transmissão vertical bidirecional (de pais para filhos e vice-versa) e também transmissão horizontal (entre indivíduos não-aparentados). Nesse sentido, a evolução cultural é altamente “contagiosa” e se tornou muito mais importante para a espécie humana que a evolução biológica.

A evolução cultural permitiu o desenvolvimento da ciência e da medicina e, mais recentemente, levou ao estudo detalhado e elucidação dos genomas do ser humano e de seus principais parasitas. Pode parecer otimismo excessivo, mas é possível que o estudo detalhado da constituição genômica de seus inimigos parasitas finalmente permita ao Homo sapiens adquirir a vantagem evolucionária que lhe permita escapar do jugo da Rainha Vermelha. 


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
08/05/2009