Patrimônio saqueado

Cartaz da exposição “A quem pertenciam esses quadros?”, em cartaz de 25 de junho a 26 de outubro de 2008 no Museu de Arte e História do Judaísmo de Paris.

“A quem pertenciam esses quadros?”. A pergunta é o título da mais recente exposição em cartaz no Museu de Arte e História do Judaísmo de Paris, que tem um mote no mínimo inusitado: descobrir os donos de obras de pintores como os franceses Delacroix, Ingres, Monet, Manet, Cézanne, Degas e Matisse.

A aparente inocência é descortinada logo no subtítulo: “Espoliações, restituições e pesquisa de origem: o destino das obras de arte trazidas da Alemanha após a guerra”. Isso mesmo: trata-se de expor ao público 53 quadros em sua grande maioria devolvidos à França pela Alemanha depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

Desde a década de 1950, quando foram confiados à guarda dos Musées de France, os legítimos proprietários dessas obras vêm sendo procurados. Embora nem todos os quadros tenham pertencido a judeus, não é à toa que atualmente a tarefa esteja a cargo da Mission Mattéoli, ou “Missão para o estudo da espoliação dos Judeus da França”, instituída em 1997 por Alain Juppé, então primeiro-ministro francês.

Durante a Segunda Guerra Mundial, estima-se que tenham sido roubadas cerca de um quinto das peças do patrimônio artístico europeu, muitas pertencentes a judeus, do qual incontáveis obras ainda continuam desaparecidas. Apenas para se ter uma idéia, só Hermann Göring (1893-1946), o todo poderoso comandante da Luftwaffe, a força aérea alemã, requisitou mais de 700 telas para sua coleção particular, após cerca de 20 viagens a Paris – desnecessárias para o andamento da guerra.

Para além da busca aos proprietários dos quadros, a exposição revela uma faceta pouco estudada das guerras e invasões: o roubo e a destruição do patrimônio artístico e histórico de áreas afetadas pelos conflitos. O assunto também foi tema do filme Europa saqueada (em inglês, The rape of Europa, ou ”O estupro da Europa”), de Richard Berge, Nicole Newnham e Bonni Cohen.

O filme venceu a Mostra Documentário do 12º Festival de Cinema Judaico, ocorrido em agosto passado em São Paulo, e o Riverrun International Film Festival (realizado na Carolina do Norte, EUA) de 2007. Ele é baseado no livro homônimo da historiadora Lynn H. Nicholas, publicado em 1994 e traduzido para o português dois anos depois pela editora Companhia das Letras (edição infelizmente esgotada).

Pilhagem cultural

Retrato de Adele Bloch-Bauer, tela de 1907 pintada pelo austríaco Gustav Klimt (1862-1918). Esta é uma das várias obras espoliadas durante a Segunda Guerra que foram parar em grandes museus europeus.

Exposição, filme e livro tratam da pilhagem que o Terceiro Reich promoveu em tesouros culturais da Europa oriental e ocidental não só a partir da conhecida obsessão de Hitler, pintor medíocre, pela arte – abordada no excelente filme A arquitetura da destruição (1989), de Peter Cohen –, mas também a partir de seus quase anônimos heróis, como a francesa Rose Valland (1898-1980), que registrou em seu diário secreto as milhares de obras roubadas e depositadas no museu Jeu de Paume, em Paris.

Atualmente, a questão tem facetas bem menos edificantes, como a luta de Maria Altmann para recuperar a tela Retrato de Adele Bloch-Bauer, pintada pelo austríaco Gustav Klimt e pertencente à sua família. Até 2006, o quadro enriquecia a coleção do Museu Nacional de Viena. Como essa, várias outras obras espoliadas na Segunda Guerra compõem o acervo de museus europeus de grande prestígio.

Hoje em dia, como recentemente comentou a historiadora Lynn Nicholas, é impossível alguém do mundo artístico ignorar o problema, que deu origem a um sem-número de processos na justiça, clamando pela restituição das obras de arte. A própria venda do quadro de Klimt por Maria Altmann ao magnata Ronald Lauder pela incrível soma de 135 milhões de dólares ajudou a dar publicidade ao tema.

No entanto, se é bastante fácil justificar a legitimidade da demanda por parte de indivíduos expropriados durante a Segunda Guerra Mundial (embora nem sempre seja fácil comprovar a legitimidade da propriedade perante os tribunais), a questão torna-se mais complicada quando nos vemos diante de contendas entre países. A Rússia, por exemplo, que guarda muitas obras roubadas da Alemanha nazista após o fim da Segunda Guerra, considera legítima a sua posse, como espólio de guerra. Isso sem contar que as obras expropriadas já foram nacionalizadas pela antiga União Soviética. Discutir a restituição é abrir uma negociação diplomática.

O caso do Iraque
As complicações não param por aí: se é fácil condenar o roubo cometido pelos nazistas, a reflexão sobre o assunto torna-se ainda mais premente quando saímos do âmbito da Segunda Guerra Mundial. Após a invasão do Iraque, em 2003, o Museu Nacional de Arqueologia de Bagdá foi objeto de um grande saque, o que gerou protestos por parte da comunidade científica e artística de todo o mundo. Na realidade, desde a guerra do Golfo o patrimônio histórico e artístico daquele país vem sofrendo destruições significativas.

Tela de abertura da página da Fundação Memória do Iraque, criticada por expatriar documentos daquele país.

Não custa lembrar que, desde a Antiguidade, o território atualmente iraquiano já foi ocupado por sumérios, babilônios, assírios e persas, possuindo objetos e sítios arqueológicos que jamais poderão ser reconstruídos.

Da mesma forma, a Fundação Memória do Iraque, com sede tanto em Bagdá quanto em Washington, está sendo acusada pelo diretor da Biblioteca e Arquivo Nacional do Iraque e pelo ministro interino da Cultura daquele país de saquear documentos. Esse material, alegam eles, deveria estar guardado no próprio país, e não em instituições privadas norte-americanas.

Pelas leis internacionais de guerra, uma potência de ocupação – caso dos Estados Unidos – pode deter em instituições públicas documentos e arquivos necessários para a ocupação. Não é o caso da Fundação Memória do Iraque, grupo privado cujos atos vêm sendo condenados por instituições como a Sociedade Americana de Arquivistas. A Fundação argumenta que não há condições atuais de guarda, no Iraque, para documentos tão valiosos.

Como se pode facilmente perceber, a polêmica está longe de terminar. Mas é evidência da seriedade do problema: guerras, ocupações e invasões implicam em saques e destruições, por vezes irreversíveis, do patrimônio histórico e artístico da população e dos países envolvidos nos conflitos.

Em tempo: da próxima vez que você fizer uma visita, real ou virtual, a um grande museu – como, por exemplo, a coleção de arte africana do Museu Britânico, acessível integralmente para consulta na internet –, não custa nada se perguntar a quem aquelas magníficas obras pertenciam antes de fazer parte da coleção. E, principalmente, como elas foram parar em Londres. 


Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
10/10/2008