Perdido? Consulte o mapa no cérebro

Sabe aqueles mapas em cada andar do shopping-center , com um quadradinho pra cada loja ao longo dos corredores e uma baita seta vermelha dizendo “Você está aqui”? Mesmo que esses mapas lhe pareçam indecifráveis, seu cérebro usa uma estratégia semelhante para levar você até sua loja preferida. Isso é o que indica pesquisa publicada em 11 de setembro na revista Nature por um grupo de neurocientistas nos EUA e um neurocirurgião da Universidade Tel-Aviv, em Israel.


Há mais de 20 anos é sabido que o hipocampo, região do cérebro responsável tanto pela formação de novas memórias quanto pela capacidade de encontrar um lugar determinado, seja numa cidade, floresta ou labirinto de laboratório, contém as chamadas ’células-de-lugar’.

São neurônios que representam pontos no espaço: cada um só entra em ação quando o animal passa por um lugar determinado, não importa se andando ou correndo, se por seus próprios pés ou apenas colocado ali. Junte alguns milhares desses neurônios, e eis um mapa dentro do seu cérebro: como cada um desses neurônios tem o seu ’lugar’ favorito, o neurônio em ação a cada vez indica o lugar do momento.

Tudo isso, no entanto, foi feito em ratos, depois em primatas — mas não se sabia se valeria também para o homem. Ao que parecia, aliás, o hipocampo humano talvez fosse diferente, dedicado à memória, mas não especificamente à navegação, porque não se encontrava nada parecido com as tais células-de-lugar. Mas isso acaba de mudar.

Arne Ekstrom, da Universidade Brandeis (EUA), e seus colaboradores investigaram sete pacientes cujas crises epilépticas não respondiam a remédios, e que tiveram eletrodos implantados dentro do cérebro para determinação do foco preciso das crises para remoção cirúrgica. Durante o período de investigação do foco, os pacientes concordaram em ajudar a ciência de uma forma cada vez mais comum em laboratórios de pesquisa: jogando videogames .

O jogo da vez era de táxi: a tarefa dos pacientes era vagar por uma cidade virtual, vista na tela do computador, pegar os passageiros que encontrassem e levá-los ao destino que pedissem. Os vários trajetos do jogo faziam-nos passar por todos os pontos possíveis da cidade, pela frente de ’lojas’ diferentes, com destinos diferentes.

Enquanto isso, os pesquisadores registraram a atividade elétrica de quase 300 neurônios no hipocampo e na região adjacente, chamada para-hipocampal, dos vários pacientes, e buscavam descobrir o que fazia esses neurônios dispararem sinais elétricos no cérebro — ou seja, entrarem em ação.

De fato, 42% dos neurônios disparavam pulsos elétricos relacionados a pelo menos um aspecto da ’cidade’: o local por onde passava o motorista, a visão de ’marcos’ específicos (lojas), o destino da viagem. Como nos ratos, neurônios que reagem puramente à posição no ’mapa’, disparando quando o motorista passa por um local específico, foram encontrados principalmente no hipocampo.

Neurônios que codificavam apenas a visão de lojas diferentes, independentemente da sua posição na cidade, agrupavam-se na região para-hipocampal. Já outros neurônios, encontrados em ambas as estruturas, representavam combinações: somente entravam em ação ao passar por um lugar ou ao se avistar uma loja se ele ou ela fosse o destino do motorista, ou respondiam à visão de uma certa loja somente quando ela era avistada de um certo ponto da cidade.

Além de confirmar a existência de células-de-lugar no hipocampo humano, o estudo indica que em nosso cérebro há uma divisão de tarefas relacionadas à navegação. Enquanto o hipocampo representa a posição absoluta do corpo no espaço (do tipo estou-no-quadrante-superior-esquerdo-da-cidade), o para-hipocampo forma uma representação do espaço a partir de marcos geográficos visíveis (do tipo minha-loja-preferida-fica-perto-da-loja-de-perfumes ou é-vizinha-do-banco).

A combinação dessas informações é muito útil. Neurônios que representam um marco dependendo do lugar de onde ele é avistado — como 15 dos quase 300 estudados — podem ajudar a planejar o caminho a seguir para chegar aonde se deseja; neurônios cuja atividade depende de o marco (ou a loja) que eles representam ser o alvo da vez, também encontrados no estudo, podem informar quando o objetivo é atingido.

Para chegar à sua loja preferida no shopping , portanto, vale tudo: conhecer o caminho até de olhos fechados (e contar com as células-de-lugar do seu hipocampo, que fornecem um mapa do local como o “Você está aqui” do shopping ), usar outras lojas no caminho como referência (e contar com a representação de marcos geográficos no para-hipocampo, como a banquinha de sorvete, a joalheria onde você nunca pôs os pés, aquela loja de roupas abomináveis) ou tudo isso ao mesmo tempo.

E se nada disso funcionar, você ainda pode fazer como meu marido, cuja incapacidade de encontrar a saída do shopping já é lendária, e apelar para mais outro mapa: o que se encontra no cérebro alheio — geralmente o meu. E olha que eu sempre estaciono no mesmo lugar…

Fonte: Ekstrom AD, Kahana MJ, Caplan JB, Fields TA, Isham EA, Newman EL, Fried I (2003). Cellular networks underlying human spatial navigation. Nature 425, 184-187.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia