O Pensador , escultura do artista francês Auguste Rodin (1840-1917).
Quem toca piano ou outro instrumento musical conhece o problema: aquela música que você conhece de cor há anos só sai inteira e certinha se você não tentar pensar onde colocar os dedos. Ou sai de primeira, como se os dedos ‘soubessem’ o caminho sem o cérebro, ou você empaca e precisa recomeçar do começo.
O problema se explica, até onde se sabe, por um embate entre duas regiões diferentes do cérebro que participam do controle motor: o córtex frontal, que distribui ordens e supervisiona sua execução, e os núcleos da base, mais no interior do cérebro, que guardam as seqüências completas de comandos que o córtex deve dar aos músculos. Movimentos recém-aprendidos precisam de decisões constantes do córtex para serem executados, e você se sentirá lendo cada nota na pauta antes de pensar em onde colocar qual dedo.
Movimentos bem aprendidos, no entanto, não dependem mais de decisões do córtex ‐ na verdade, tentativas de interferência do córtex acabam atrapalhando os planos dos núcleos da base, que a essa altura já conseguem dar conta do recado sozinhos, e precisam apenas que o córtex passe adiante os comandos para os músculos, sem acrescentar idéias novas.
De acordo com um estudo publicado em novembro na revista Cerebral Cortex
, pensar demais não atrapalha só os músicos tentando tocar no ‘piloto automático’: a interferência do córtex frontal também é prejudicial em outras tarefas que requerem respostas rápidas.
O chamado ‘aprendizado automático’ acontece quando seu cérebro aprende sem que você note que está aprendendo, seja o assunto regras gramaticais, uma musiquinha, seqüências de letras ou a ordem de botões a apertar ‐ como no estudo de Paul Fletcher e seus colegas, da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e três outros centros de pesquisa europeus.
A equipe pediu a 11 voluntários para tocar um de quatro botões, dependendo da instrução que aparecesse na tela. Após cada toque, aparecia nova instrução na tela ‐ e a tarefa consistia em fazer 300 toques o mais rápido possível. Todos os voluntários sabiam que, em meio ao exercício, uma seqüência de 10 toques se repetiria dezenas de vezes. Alguns deveriam tentar descobri-la; os outros não precisariam se preocupar com ela.
Em exercícios como esse, os voluntários acabam aprendendo inconscientemente a seqüência e executam-na mais rapidamente do que outros conjuntos de toques ‐ assim como nossos dedos digitam no teclado palavras muito usadas como ‘cérebro’ e ‘neurônio’ mais rapidamente do que as outras (tá, os meus dedos pelo menos). Fletcher e seus colegas descobriram que todos os voluntários melhoraram consideravelmente ao longo da tarefa, isto é, apertavam o botão correto cada vez mais rápido ao longo do teste. Ou seja: aprendiam.
Mas aqueles que tentavam descobrir a seqüência que se repetia eram sempre mais lentos do que os outros, e só ao final do teste conseguiam apertar os botões tão rapidamente quanto aqueles que não tentavam encontrar os 10 toques que se repetiam. Pensar demais às vezes atrapalha.
Nada muito grave, claro: estamos falando de reações apenas 15% mais lentas quando se tenta descobrir o que se está aprendendo antes do aprendizado em si. O interessante do estudo é mostrar, com a ajuda de exames de ressonância magnética funcional, que a tentativa de descobrir a seqüência secreta ao invés de simplesmente deixar o cérebro apertar os botões à vontade gera uma grande ativação do córtex frontal, que atrapalha a conversa entre outras regiões do cérebro que deveriam estar cuidando do aprendizado automático.
O curioso é que, no final das contas, é o mesmo cérebro que aprende, quer ele note isso ou não. E, se nota o que está fazendo, ele mesmo se atrapalha no processo. Um daqueles raros casos em que pensar demais faz mal…
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia
10/12/04