Seres diminutos, enorme flagelo

Os vírus demoraram a ser descobertos e conhecidos, de tão diminutos. Há algumas décadas, esses seres sequer podiam ser visualizados, mesmo pelos microscópios mais potentes. Eles eram considerados por muitos cientistas como partículas inanimadas incapazes de realizar um dos atributos básicos da vida: a capacidade de se reproduzir de forma independente.

O coronavírus causador da síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês), uma das mais preocupantes viroses emergentes (foto: CDC).

Entretanto, os aspectos da biologia e da evolução desses seres, aliados as estratégias que eles utilizam para subverter os mecanismos de defesa de nosso corpo são alguns dos temas mais fascinantes da biologia moderna. Além disso, algumas das doenças causadas por esses agentes infecciosos – as chamadas viroses emergentes – representam uma fonte de enorme inquietação para a medicina atual.

Em latim, a palavra vírus significa veneno. Antes da primeira visualização desses agentes infecciosos, acreditava-se que as doenças transmitidas por eles, conhecidas como viroses, eram causadas por venenos provenientes de algum ser vivo. Dessa forma, tentava-se dar uma explicação convincente para a incapacidade que se tinha na época de visualizar os vírus. A hipótese explicaria ainda o fato de certas doenças continuarem a ser transmitidas mesmo quando fluidos provenientes de doentes eram passados através de filtros de porcelana com poros capazes de reter bactérias, os menores organismos conhecidos na época.

Cada partícula viral, também conhecida como vírion, alcança, em média, apenas algumas dezenas de nanômetros (a bilionésima parte de um metro) e é de constituição simples. Os vírions são formados por apenas uma molécula de acido nucléico – que pode ser o DNA ou o RNA, mas nunca ambos – e por um envoltório protéico denominado capsídeo. Sob esse envoltório pode ainda estar presente um revestimento lipídico adquirido a partir da membrana plasmática da célula parasitada.

Em sua forma extracelular, os vírions podem permanecer inertes por dezenas ou mesmo centenas de anos. A simplicidade e elegância estrutural, associadas a uma elevada capacidade reprodutiva baseada em uma série de truques engenhosos voltados para ludibriar as defesas imunes e intracelulares, fazem com que os vírus se convertam em agentes infecciosos tremendamente eficientes.

Invasão e reprodução

Vírus prestes a invadir uma célula bacteriana, vistos ao microscópio eletrônico (foto: Wikimedia Commons).

Quando os vírus entram em contato com suas células hospedeiras, eles perfuram a membrana plasmática celular e introduzem seu ácido nucléico no citoplasma destas. Se, nessa fase, eles conseguirem superar as defesas internas da célula, a maquinaria celular será direcionada para produzir novos vírions que, após montados, serão liberados no meio extracelular levando consigo parte da membrana plasmática da célula hospedeira ou causando sua ruptura (ciclo lítico).

Dessa forma, as células têm seu metabolismo “escravizado” e deixam de produzir as moléculas necessárias para a sua sobrevivência, dedicando-se apenas à produção de novos vírions. Em algumas ocasiões, contudo, o ácido nucléico viral poderá ser incorporado ao genoma da célula parasitada e ali permanecer de forma silenciosa, multiplicando-se juntamente com a sua hospedeira (ciclo lisogênico) até que condições favoráveis sejam alcançadas e novos vírions possam ser produzidos.

Contudo, em alguns casos, a transição entre os ciclos lisogênico e lítico jamais ocorre e o material genético dos vírions permanece incorporado de forma permanente ao genoma da célula parasitada. Genes de origem viral têm sido encontrados em todos os organismos vivos e acredita-se que a presença de alguns desses pode ser benéfica para seus portadores. Nos seres humanos, por exemplo, crê-se que o gene da ptialina, uma enzima salivar relacionada com a digestão de carboidratos, seja regulado por uma seqüência gênica de origem viral.

Durante a sua reprodução e subseqüente deslocamento de uma célula para outra, os vírions podem também levar consigo trechos do DNA das células parasitadas, contribuindo assim para um aumento da diversidade genética dos organismos hospedeiros.

Devido às suas características únicas, esses seres são hoje importante instrumento biotecnológico empregado para a introdução de genes em células. Para isso, essa metodologia emprega a capacidade dos vírions de infectar apenas um tipo celular exclusivo após reconhecerem receptores específicos na membrana plasmática.

Dessa forma, esses agentes infecciosos podem se constituir no futuro em importantes aliados da terapia genética associada com o combate de doenças humanas como a artrite, o lúpus e o câncer. Pesquisas têm, por exemplo, empregado o vírus do herpes simples para que células tumorais sejam sensibilizadas e respondam de forma melhor ao tratamento com drogas anticarcinogênicas. Para que isso ocorra, genes associados com a reprodução do vírus foram substituídos por genes que ativam drogas tóxicas para as células do tumor.

Viroses emergentes
Contudo, tradicionalmente, os vírus estão associados com muitas enfermidades humanas como gripe, sarampo, hepatite, herpes, rubéola, varíola, febre amarela, caxumba e poliomielite. Além delas, há alguns anos outras doenças têm preocupado as autoridades sanitárias de todo o mundo: são as viroses emergentes, causadas por vírus que surgem como importante problema de saúde.

Hantavírus causador da síndrome cardiopulmonar visto ao microscópio eletrônico (foto: CDC).

Um dos exemplos clássicos dessas viroses emergentes é a infecção pelo vírus HIV – a Aids –,atualmente disseminada por toda a humanidade e talvez uma das enfermidades humanas mais estudadas atualmente. Outras viroses emergentes que causam especial preocupação são aquelas associadas com as febres hemorrágicas. Isso se deve a seu caráter comumente letal e a sua capacidade de disseminação. Entre elas podemos citar a hantavirose e a febre hemorrágica causada pelo vírus Ebola.

As hantaviroses são enfermidades agudas que podem se apresentar sob a forma de febre hemorrágica com síndrome renal ou pulmonar. A doença é transmitida de forma sazonal por aerossóis disseminados pela urina de roedores silvestres portadores do vírus. Casos de hantavirose têm sido relatados em estados como Minas Gerais, Goiás e São Paulo, levando à morte cerca de 5% dos pacientes.

Já o vírus Ebola foi isolado em 1976, após uma epidemia de febre hemorrágica em vilas do noroeste do Zaire (África), próximo ao rio Ebola. Esse vírus está associado com um quadro de febre hemorrágica extremamente letal, que acomete as células hepáticas e o sistema retículo-endotelial. Até o presente, quatro epidemias de febre hemorrágica causadas pelo vírus Ebola ocorreram no Zaire e no Sudão, afetando mais de 500 pessoas com um índice de mortalidade de mais de 60%.

SARS
Outra virose emergente que andou ocupando recentemente a primeira página dos jornais e os noticiários da TV é a SARS (sigla em inglês para síndrome respiratória aguda grave). Essa doença é causada por um coronavírus e foi descoberta inicialmente em novembro de 2002 na província Guangdong, no sul da China. A SARS propagou-se por diversos países, vitimando cerca de 780 pessoas.

Apesar da taxa de mortalidade ser de 9,6%, similar à da febre amarela, por exemplo, a SARS por ser transmitida diretamente de um indivíduo para outro, representa um risco maior para a saúde mundial do que infecções transmitidas por vetores e restritas a certas regiões de nosso planeta. Alem disso, como os sintomas da SARS são bastante similares aos da gripe, essa virose pode ser confundida com um simples resfriado.

O mosquito Aedes aegypti, vetor dos vírus da dengue e da febre amarela. (Foto: Genilton Vieira/Fiocruz).

Devido aos enormes riscos associados com o seu contágio, a Organização Mundial da Saúde lançou em novembro de 2003 um alerta mundial e tomou medidas para frear a sua disseminação. Essas medidas têm se mostrado eficientes e, apesar de casos terem sido registrados em dezenas de países, atualmente essa virose está sob controle.

Outra virose, foco de imensa preocupação para o sistema de saúde brasileiro, é a dengue. Essa doença é causada por quatro tipos imunológicos similares de arbovírus da família dos flavivírus que têm se disseminado pelas zonas urbanas do Brasil devido à proliferação de criadouros de seus vetores, os pernilongos Aedes aegypti (e raramente Aedes albopictus).

O termo dengue deriva-se da expressão ki dengu pepo , do dialeto africano swahili, que descreve os ataques causados por maus espíritos e foi inicialmente empregado para designar a enfermidade que acometeu alguns ingleses em uma epidemia nas Índias Ocidentais Espanholas em 1927-1928. Acredita-se que a dengue tenha sido trazida para o continente americano pelos colonizadores europeus, mas não é possível afirmar que as epidemias foram causadas pelos vírus da dengue, pois seus sintomas são similares aos de infecções como a febre amarela.

Atualmente, a dengue é a arbovirose mais comum que atinge o homem, sendo responsável por cerca de 100 milhões de casos por ano e colocando em risco, talvez, uma população de 2,5 a 3 bilhões de pessoas. A dengue hemorrágica e a síndrome de choque da dengue atingem pelo menos 500 mil pessoas por ano e são responsáveis por taxa de mortalidade de até 10% para pacientes hospitalizados e 30% para pacientes não tratados.

A dengue e as outras viroses emergentes são fruto do desequilíbrio ambiental associado com a ausência de vontade política para se promover medidas de saneamento básico e controle de poluição. Enquanto nossos políticos estiverem mais interessados em se autopromover em vez de se preocupar com a saúde da população, estaremos à mercê de flagelos como as viroses emergentes.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
04/04/2008

SUGESTÕES PARA LEITURA
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