Sobre alface, venenos e togas

 
No texto inaugural desta coluna, abordamos, entre outros temas, o padrão conhecido como porta-giratória, em que ex-executivos de um setor da indústria são contratados pela agência governamental reguladora daquele setor e vice-versa. Tudo isso num ambiente que, até recentemente, era de forte pressão pela desregulamentação, levando a decisões que tendem a favorecer os interesses da indústria.

E o que mudou recentemente? Ora, veio esta brusca e brutal crise econômica mundial, cujos efeitos estamos todos sentindo na carne, fruto da desregulamentação da indústria financeira. E, como numa ópera-bufa, os mesmos barítonos que clamavam morte à regulamentação agora se esgoelam pedindo mais, mas só depois de mais um pacote trilionário de ajuda, com seu, meu, nosso dinheiro.

No mesmo texto, tomamos também como exemplo a agricultura comercial e seus insumos químicos. E não é que o noticiário nos trouxe, pouco depois disso, uma eloqüente ilustração dos pontos acima?

Primeiro, no início de novembro, ficamos sabendo que a nossa querida e tradicional farinha láctea foi objeto de recall nos Estados Unidos por conter “potenciais resíduos” de um pesticida usado em plantações de milho no Brasil, mas proibido nos EUA. Os níveis de tais resíduos estão, no entanto, dentro dos padrões brasileiros. Ah, bom!

Mas caberia ao leigo se perguntar: o que há de diferente nas pragas e no metabolismo humano lá e cá? Por que esse pesticida foi banido lá e ainda é considerado seguro ou aceitável aqui? Um dos principais motivos é que as agências reguladoras dos países desenvolvidos estabelecem cronogramas diferentes para a suspensão do uso doméstico e da fabricação!

Essa orientação é naturalmente voltada para a exportação para países com normas mais brandas. Não é difícil imaginar os esforços das indústrias para manter essas normas como estão, garantindo uma sobrevida comercial ao produto e o escoamento dos estoques acumulados em função da suspensão da comercialização e do uso nos seus países-sede.

Proibição e importação
Os dados do Sistema Integrado de Comércio Exterior mostram claramente o aumento da importação brasileira de agrotóxicos à medida que eles são proibidos em outros países. Exemplos são o paration metílico, que foi banido na China em 2006 e cuja importação pelo Brasil duplicou no ano seguinte, e o carbofuran, proibido na Europa desde 2005, e cuja importação também dobrou.

Este é um processo perverso, em que se atribui silenciosamente um valor monetário à vida, já que um certo aumento de morbidade e mortalidade em um local do planeta terá como contraponto a manutenção de empregos e lucros em outro.

Estava eu ainda sondando os mistérios das variações temporais e longitudinais da toxicologia humana quando, no dia 9 de novembro, topei com outro exemplo que parecia saído por encomenda. Em matéria para O Globo, Evandro Eboli relatava como a Justiça impediu a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de analisar agrotóxicos, graças a pareceres favoráveis da pasta da Agricultura e a liminares obtidas por empresas envolvidas com a questão.

Página inicial do portal da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão federal responsável pelo controle de medicamentos, alimentos e outros produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária (reprodução).

Estão em jogo doze produtos que são matéria-prima para fabricar uma centena de agrotóxicos usados em lavouras de cereais, frutas, legumes e verduras e que foram banidos nos EUA, na União Européia, no Japão e na China.

Os técnicos da Anvisa conseguiram concluir a análise de dois ingredientes. No caso da cihexatina, muito usada em lavouras de cítricos, testes com ratos, camundongos e coelhos revelaram malformação fetal, risco de aborto e danos à pele, à visão e ao fígado, o que levou à recomendação de banir seu uso no país.

O acefato também foi testado pelos técnicos da Anvisa. Mas liminares da 6ª Vara do Distrito Federal proibiram a agência de adotar qualquer medida restritiva contra produtos contendo cihexatina e mesmo de divulgar os resultados de seus estudos.

Novos capítulos
Dias depois, mais um capítulo na saga da saúde perdida nos labirintos da Justiça: a Anvisa foi autorizada a analisar os agrotóxicos – por enquanto.

E, em 15 de novembro, em outra reportagem de Evandro Eboli, ficamos sabendo que o Ministério da Agricultura adotou o parecer de um toxicologista, membro de uma empresa de consultoria contratado para defender os interesses da empresa e atuar no processo contra a Anvisa. Mas a assessoria de imprensa do Ministério da Agricultura nos tranqüiliza, afirmando que não adotou o parecer, apenas o encaminhou à Anvisa, e que não trabalha em parceria com a iniciativa privada nesses casos. Ah, bom!

Faltou ao Ministério mencionar que, além de especialista na área, o referido toxicologista era também um contratado da indústria. Detalhes, detalhes.

E assim, mais uma vez, o mundo se curva diante do Brasil: um único profissional consegue colocar em xeque o trabalho de toda a comunidade toxicológica e reguladora internacional, ao menos por certo tempo.

Quer saber? Viva a agricultura biológica…


Jean Remy Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
21/11/2008