Solução ou problema?

A matriz energética brasileira é largamente baseada em hidreletricidade. O Brasil possui algumas das maiores hidrelétricas do mundo (Tucuruí, Itaipu) e está construindo diversas novas represas no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Algumas delas estão na mídia, em particular Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira. São polêmicas do ponto de vista ambiental, e por isso mesmo estão no cerne de mais uma queda de braço fratricida que opõe, de um lado, o Ibama, o Ministério Público e algumas ONGs nacionais e internacionais e, de outro, as empreiteiras, as concessionárias de energia e os setores do governo envolvidos com a execução do PAC.

Cada nova etapa do licenciamento ambiental é motivo de um formidável jogo de pressões. O rigor supostamente excessivo das autoridades responsáveis pela emissão das licenças ambientais e a demora na tramitação das mesmas estariam na origem da queda da ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva e na posterior reestruturação do Ibama. Poderosas represas!

Grandes matérias surgem regularmente na grande imprensa, apontando os prejuízos causados pelos atrasos de cronograma de obra, calculando a quantidade de quilowatts/hora que não serão gerados, tudo por causa do famigerado licenciamento ambiental. Até o presidente Lula contribuiu – de forma certamente involuntária – para a folclorização do debate ao expressar perplexidade pelo fato de os bagres serem obstáculos ao desenvolvimento.

Bagres ou banho quente?
Quando uma operação policial apresenta com espalhafato alguns suspeitos magricelas de um crime de repercussão, há sempre algum gaiato para exclamar “Só pegaram os peixes pequenos!” ou “Só pegaram os bagrinhos!”. Essas expressões certamente não têm sua origem na bacia do Madeira, onde os bagres atingem tamanho e peso que inspiram mais respeito que deboche. Apenas os primeiros colonizadores registraram a existência de bagres de até 4 metros, mas bagres de 2 metros ainda são capturados nas cachoeiras do Madeira que serão inundadas pelas represas, apesar da forte pressão de pesca.

E não estamos falando em troféus de pesca esportiva: os grandes bagres são a base da pesca comercial e artesanal no Madeira. Além disso, são grandes migradores e de fato não poderão transpor as represas nem contra a corrente nem a favor. Mas a polarização do debate apaga essas sutilezas. Como apaga o fato de que a bacia do Madeira é multinacional, inclui a Bolívia e o Peru, que têm se notabilizado pela sua invisibilidade nessa discussão, pelo menos do lado brasileiro.

Pena que os bagres, mesmo grandes, sejam pouco carismáticos: talvez jamais saibamos ao certo quantas famílias viviam de sua pesca no Brasil e na Bolívia. Há controvérsias também em relação ao número de pessoas que deverão ser deslocadas pelo alagamento, passando de ribeirinhos a colonos em terras que não escolheram e onde deverão se reassentar e, mais difícil, se reinventar.

Tudo isso em nome do seu banho quente. Seu, deles? Não, seu mesmo, caro leitor. As grandes hidrelétricas não são planejadas para a eletrificação rural: elas levam energia para centros urbanos e industriais por meio de linhas de transmissão de milhares de quilômetros de extensão, e as populações locais continuam queimando óleo em geradores para assistir à novela das oito ou bater uma bola depois do pôr do sol.

Por isso mesmo as discussões com as autoridades municipais e estaduais sobre compensações diversas ocupam tanto espaço na agenda desses empreendimentos: afinal, seus benefícios são difusos, mas seus impactos são locais.

Banho quente ou ecoturismo em Marajó?

Vista aérea da desembocadura do rio Amazonas, com a ilha de Marajó. O represamento do rio Madeira, argumentam alguns, pode afetar a dinâmica de sedimentos da bacia do rio Amazonas e reduzir a superfície dessa ilha (foto: Nasa).

Impactos locais? Bem, nem tanto. Afinal, o rio Madeira é responsável por cerca de 50% da carga de sedimentos em suspensão na foz do rio Amazonas, cuja geografia –assim como a de todo delta ou estuário – é a resultante do equilíbrio entre o aporte de sedimentos pelo rio e sua erosão pelo mar.

E uma das principais polêmicas em torno das represas no Madeira é essa: que papel terão na dinâmica de sedimentos da maior bacia hidrográfica do mundo? Serão armadilhas fatais, precocemente assoreadas pelo acúmulo de sedimentos, reduzindo sua própria vida útil e talvez contribuindo para reduzir a ilha de Marajó a uma fração de sua superfície e demografia atuais?

Especialistas de notório saber, contratados pelas empreiteiras, juram que não. Até o fechamento desta edição, não obtivemos confirmação por estudos independentes. Mas um cínico diria que essa eventual redução do aporte de sedimentos pelo Madeira seria compensada pela erosão causada pelo crescente desmatamento no conjunto da bacia Amazônica. De fato, pode até ser.

Os reservatórios e o mercúrio
Com raras exceções, o represamento de rios para a formação de reservatórios leva a um aumento significativo da concentração de mercúrio em peixes. A liberação de mercúrio do solo e da vegetação inundada e a explosão de atividade microbiológica devido à decomposição da vegetação alagada são alguns dos muitos fatores que conspiram para isso.

O pico de concentração de mercúrio ocorre geralmente cerca de cinco anos depois do enchimento e pode levar até 35 anos para retornar aos níveis anteriores ao enchimento. As represas se tornam biorreatores que retêm sedimentos ricos em mercúrio inorgânico e favorecem sua conversão em metilmercúrio, potente neurotoxina fortemente biomagnificada nas cadeias alimentares aquáticas.

Assim, as águas liberadas rio abaixo contêm normalmente proporções de metilmercúrio muito maiores que as encontradas no rio acima dos reservatórios, fazendo com que os níveis de mercúrio em peixes rio abaixo sejam maiores ainda que nos próprios reservatórios. Esse efeito pode ser naturalmente agravado no caso de represas em sequência, como é o caso de Jirau e Santo Antônio, efeito que poderá vir a ser amplificado pela construção de uma terceira represa, Cachuela Esperanza – esta em território boliviano e ainda em projeto.

É mais uma das polêmicas e incertezas que rondam Jirau e Santo Antônio: que efeito terão sobre o mercúrio em peixes, sabendo que durante mais de dez anos o Madeira foi palco da maior corrida do ouro do século 20, exatamente no trecho onde se formarão os reservatórios? Estima-se que varias centenas de toneladas de mercúrio metálico tenham sido liberadas no Madeira no trecho entre Porto Velho e Guajará-Mirim, principalmente no período de 1979 a 1990, e ninguém sabe ao certo que destino tiveram. Desconfortável, não?

E a Bolívia, onde fica?

Encontro do rio Madeira, à esquerda, com o Abuña, à direita. A porção de terra no centro da foto é o ponto mais setentrional da Bolívia, país que pode ter parte de seu território inundado pelo reservatório da represa de Jirau (foto: Filipe Mesquita de Oliveira).

Apesar do aparente silêncio do lado da Bolívia, há viva inquietude no país quanto às consequências desses grandes projetos naquele lado da bacia do Madeira, pelo menos por parte de universidades, institutos de pesquisa bolivianos e estrangeiros, ONGs e províncias e prefeituras da região.

Em maio, participei em La Paz de um evento sobre a avaliação de impactos ambientais das grandes hidrelétricas nos trópicos, em especial o caso do rio Madeira. Contribuí com exemplos relativos à questão do mercúrio em represas como Samuel (RO), Balbina (AM), Tucuruí (PA) e Petit-Saut (na Guiana Francesa, a melhor estudada nesse quesito) e, sobretudo, levei vários sustos muito instrutivos.

O maior deles foi descobrir um estudo de hidrólogos e sedimentólogos bolivianos (do Instituto de Hidrologia, ligado à Universidad Mayor de San Andrés) e franceses (do Instituto de Pesquisa pelo Desenvolvimento). Usando apenas dados secundários já disponíveis (mapas, levantamentos topográficos, imagens de satélite e outros), eles concluíram que pelo menos 174 km2 de território boliviano seriam inundados pelo reservatório da represa de Jirau.

É bem verdade que há controvérsias: alguns acham que vai ser muito mais. Outros estão preocupados com a subida do lençol freático, que, mesmo fora das áreas alagadas, arrisca afogar as castanheiras, de raízes pouco tolerantes a solos encharcados, mesmo por curtos períodos.

Há cerca de 800 famílias que vivem da comercialização da castanha na região que seria afetada do lado Boliviano. Não há de ser nada: quem sabe o Evo Morales institui a Bolsa-Castanha… Seria um prato cheio para a imprensa marrom. A piada é péssima, mas, como diziam os Titãs, “certas horas isto é o que nos resta”. Do lado brasileiro, afirma-se que a área alagada não atingirá o território boliviano. Resta-nos esperar para ver.

Efeito-estufa

Estudos constataram forte emissão de gases do efeito estufa na saída da água após passagem pelas turbinas na hidrelétrica de Balbina, retratada acima (foto: A. Kemener / CH 245).

E se você achava que hidrelétricas são simpáticas por não fazerem fumaça, acorde: elas também contribuem significativamente para as emissões de gases de efeito estufa como CO2 e metano, no reservatório, nas turbinas e rio abaixo, para a formação de criadouros de vetores, perda de terras aráveis e monumentos naturais, desmatamento ao longo das linhas de transmissão, e muitos outros tipos de impacto.

Não há mais espaço para detalhá-los, fica para uma próxima (para saber mais a respeito, leia o artigo de capa da CH 245, de janeiro de 2008). Mas essa lista resumida talvez explique por que foram colocadas varias dezenas de condicionantes para o licenciamento ambiental das usinas do Madeira. Difícil atribuí-las apenas ao burocratismo ou à má vontade dos supostos inimigos do progresso.

Se a geração de hidrletricidade tem impactos ambientais e socioeconômicos, qualquer outra forma de gerar energia – óleo, gás, carvão, energia nuclear, eólica, solar, geotérmica, maremotriz – também tem. Um painel solar é fashion, simpático, silencioso e inodoro, mas foi produzido em alguma fábrica distante, barulhenta e fedorenta, a partir de matérias-primas extraídas de minas idem.

A avaliação de uma opção energética deve ser abrangente, incluindo todas as suas etapas e não apenas as mais visíveis, como a represa, o painel solar ou a termelétrica. A avaliação dos custos ambientais e de saúde de cada opção energética é ainda mais complexa, como vimos pelos poucos exemplos acima. Nesse contexto, pôr a culpa no bagre não ajuda a tomar decisões esclarecidas.

E se o rio secar?
Já tivemos racionamento de energia hidrelétrica por falta de chuvas, e o atual caos climático sugere que isso pode acontecer de novo, em versão revista e piorada. O IPCC prevê exatamente secas mais longas, maior frequência de eventos extremos, maior irregularidade das chuvas no tempo e no espaço. Não seria bom ter um plano B que não emitisse carbono e não dependesse da meteorologia?

Centrais nucleares não barram rios, não formam megarrepresas – que podem estourar arrasando tudo rio abaixo, como ocorreu recentemente no Piauí –, não brigam com bagres ou castanheiras, não emitem carbono ou metano, não expulsam ninguém de casa, não alteram o ciclo do mercúrio ou o balanço de sedimentos. Ah, esqueci: a imagem pública da energia nuclear é ainda controversa, embora venha melhorando em tempos de mudanças climáticas globais, e a energia gerada é mais cara. Mas isso depende de como são feitas as contas – outro assunto para futuras colunas.

Enquanto esperamos os próximos rounds, bom banho quente – com chuveiro elétrico – para você. Depois do banho, durma bem, lembrando sempre: os fatos não importam, imagem é tudo. Zzzzzzzzz…


Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
19/06/2009