Como realidade tecnológica, a spintrônica nasceu no início dos anos 1990, quando pesquisadores da IBM patentearam a primeira válvula de spin, um dispositivo usado atualmente em quase todos os computadores. Conto detalhes dessa história na minha coluna de setembro de 2009.
O essencial aqui é destacar o fato de que, diferente da eletrônica, que consiste no controle e manipulação da carga do elétron, na spintrônica, esses procedimentos são realizados com base no seu spin – uma propriedade das partículas elementares afetada pelos campos magnéticos (A coluna O spin que move o mundo, assinada por Adilson de Oliveira, descreve essa propriedade em detalhes).
Até agora, os produtos da spintrônica têm sido confeccionados com materiais metálicos e semicondutores. No entanto, resultados de estudos publicados na última década indicam que os supercondutores estão a caminho da fábrica.
Um dos aspectos mais fascinantes, instigantes e promissores do ponto de vista tecnológico da supercondutividade é o caráter macroscópico do seu comportamento quântico. No entanto, suas aplicações costumam ser muito tardias em relação ao descobrimento dos conhecimentos científicos que as originaram.
Por exemplo, esses supercondutores da spintrônica ameaçam entrar em jogo mais de quatro décadas após a descoberta do fenômeno que está por trás de suas eventuais aplicações. Quando comparamos esse delay entre descoberta teórica e aplicação prática ao caso de outros materiais do mesmo ramo tecnológico, temos o exemplo da válvula de spin, que foi patenteada pouco mais de dois anos após a descoberta da magnetorresistência gigante, o fenômeno que lhe dá suporte teórico. Mais detalhes sobre o feito são apresentados na coluna De Lord Kelvin a Fert e Grünberg.
Duplo tunelamento
Para apresentar os supercondutores da spintrônica, temos que lembrar que tanto a eletrônica quanto a spintrônica lidam com a observação e a contagem de eventos binários, aos quais são associados os números ‘0’ e ‘1’, denominados bits, no jargão da eletrônica digital.
Na eletrônica, os bits são associados à existência ou não de corrente elétrica, produzida pela passagem de carga elétrica nos transistores, por efeito túnel – outra estranha propriedade da mecânica quântica, que permite que elétrons atravessem paredes, mais bem explicada na coluna O fantasminha camarada da microeletrônica.
Na spintrônica atual, os bits são associados à orientação do spin do elétron, uma espécie de ímã que o elétron carrega. O bit ‘0’ refere-se ao spin apontando para uma direção e o bit ‘1’ ao spin apontando na direção contrária. Essa direção é determinada por um campo magnético, mas não importa aqui saber exatamente qual a direção. O fato é que qualquer que seja ela, sempre haverá uma contrária.
Os supercondutores podem entrar nessa história por meio da Junção Josephson (JJ), um dispositivo que podemos comparar a um sanduíche com duas fatias de material supercondutor e recheio de outro tipo de material, que é isolante, metálico ou semicondutor, magnético ou não.
Do mesmo modo como ocorre nos semicondutores, os elétrons de um supercondutor atravessam o ‘recheio’ e chegam ao supercondutor do outro lado. Só que, no caso dos supercondutores, a situação é mais complicada, porque os elétrons andam aos pares – os chamados pares de Cooper. Então, em vez de um elétron, dois têm que ‘tunelar’ simultaneamente. Apesar de complicado, isso não é problema para eles.
A indústria que fabrica equipamentos de ressonância magnética que o diga. Todos os dispositivos com JJ existentes no mercado utilizam simplesmente essa propriedade de tunelamento, que só existe por causa da dualidade partícula-onda. Ou seja, dependendo das circunstâncias, o elétron comporta-se como uma partícula, como estamos habituados a pensar, ou como uma onda. Quando ele atravessa a barreira material na JJ, comporta-se como onda.
E a indústria?
Agora, se o material entre os supercondutores for magnético, os dois elétrons do par de Cooper se comportarão diferentemente. Quando estão emparelhados, os spins dos dois elétrons encontram-se em direções contrárias, mas, ao passar pelo isolante magnético, os dois podem ficar com os spins na mesma direção.
Esse mecanismo, proposto pelo físico russo Alexander F. Andreev em 1964, talvez permita o uso de uma JJ com isolante ferromagnético como válvula de spin. A ideia vem sendo discutida na literatura desde o início dos anos 2000. Inúmeros trabalhos teóricos e experimentais, focados em diferentes tipos de supercondutores e interfaces, foram publicados, mas não há nada ainda que se assemelhe a um protótipo.
Qualquer que seja o material usado num dispositivo spintrônico, o fato essencial é que sua eficiência está ligada à capacidade de produzir corrente elétrica com spins polarizados, ou seja, com todos ou quase todos eles apontando na mesma direção.
É isso que está por trás das válvulas de spin, e é isso também que abre grandes perspectivas para os supercondutores. Além do mecanismo proposto por Andreev, existem outros fenômenos mais complexos resultantes da interação dos pares de Cooper com materiais magnéticos adjacentes a materiais supercondutores.
Todos os estudos teóricos sobre esses fenômenos indicam um fato sistematicamente observado em determinados tipos de supercondutores, como as cerâmicas: a corrente de spin presente inicialmente no material magnético fica, em grande proporção, polarizada ao atravessar o supercondutor.
Assim, além de poder funcionar como válvula de spin, alguns supercondutores podem funcionar como fonte de corrente polarizada. Teoria e experimentos andam juntos, mas falta a companhia da indústria.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana