Tunelamento quântico em reações químicas

Imagine-se ao pé de uma cordilheira como essa da imagem, que se interpõe entre você e seu destino. Não havendo um túnel para atravessá-la, você provavelmente decidirá escalar a montanha mais baixa para chegar ao outro lado.

Uma situação análoga acontece no mundo atômico. Só que, nele, montanhas metafóricas têm suas alturas medidas em unidades de energia e não na escala métrica. Seguindo a mesma lógica, o caminho mais provável é o que apresenta menos energia. Afinal, você não concorda que para escalar uma montanha gastamos energia proporcional a sua altura?

Mas, diferente do que ocorre no mundo macroscópico, no universo atômico existe uma alternativa para quando não há energia suficiente para se subir a montanha. Quando uma barreira energética (a montanha atômica) torna-se intransponível, partículas elementares, como o próton e o elétron, e até mesmo alguns átomos usam o efeito túnel para atravessá-la (Leia coluna publicada em 2007 sobre o efeito túnel).

Por outro lado, se tais partículas possuem energia suficiente, elas podem escolher “escalar a montanha” ou “usar o túnel”, dependendo das circunstâncias, que não cabe aqui serem discutidas.

No fim das contas, é tudo uma questão de balanço energético. Há uma lei universal que vale tanto para o micro quanto para o macrocosmo, segundo a qual ações que envolvem menor energia são as preferidas.

Essa questão energética vem da termodinâmica clássica e permanece válida na teoria quântica, que tornou evidente a existência de fenômenos bizarros como o efeito túnel.

O efeito túnel não apenas é possível como é o principal responsável pelos grandes avanços tecnológicos da microeletrônica

Esse efeito, também chamado fenômeno do tunelamento, é possível porque no microcosmo atômico a dualidade partícula-onda é uma estonteante realidade. Assim, um elétron, por exemplo, pode atravessar um material opaco porque, em determinadas circunstâncias, deixa de ser uma partícula para se tornar uma onda.

O fenômeno não apenas é possível como é o principal responsável pelos grandes avanços tecnológicos da microeletrônica e rendeu ao seu descobridor, o japonês Leo Esaki (1925-), o Prêmio Nobel de Física de 1973.

Reviravolta na química

O químico Henry Eyring
O químico Henry Eyring é autor da Teoria do Estado de Transição. (foto: Don Christian/ Wikimedia Commons)

Em reações químicas, o tunelamento foi previsto como uma correção secundária na Teoria do Estado de Transição (TST, na sigla em inglês), elaborada por Henry Eyring (1901-1981) em meados dos anos 1930. Desde então, ela reina absoluta no mundo da química teórica.

A TST engloba um conjunto de ferramentas matemáticas para calcular as energias envolvidas nas reações químicas. A passagem dos reagentes para os produtos das reações envolve consumo de energia, que depende do conjunto de propriedades físico-químicas dos materiais envolvidos. Calcular a probabilidade e a velocidade das reações químicas, levando em conta todos esses parâmetros, é a finalidade da TST.

Trata-se de uma ferramenta poderosíssima para a interpretação das dinâmicas de reações químicas, mas começa a dar sinais de esgotamento com alguns resultados obtidos nas duas últimas décadas, sobretudo aqueles advindos de avançadas técnicas computacionais. 

Em artigo de revisão publicado em 1983, Donald G. Truhlar, William L. Hase e James T. Hynes reclamavam da dificuldade em avançar nas pesquisas com a TST por causa da imprecisão nos cálculos das energias potenciais envolvidas nos experimentos. Atualmente, esta é uma questão superada.

Apesar da previsão do efeito túnel como fator de correção secundário na TST original e dos avanços metodológicos recentes, seu papel em reações com enzimas e em cinética química continua sob o manto da controvérsia, ora porque as correções matemáticas não ajustam bem os resultados experimentais, ora porque os resultados experimentais não são conclusivos.

Em artigo publicado na edição de 10 de junho da revista Science, Peter Schreiner e colaboradores mostram-se convencidos de que o tunelamento vai entrar de vez na história da química orgânica como mecanismo dominante.

Pesquisadores mostram-se convencidos de que o tunelamento vai entrar de vez na história da química orgânica como mecanismo dominante

A reviravolta tem como personagem central a família dos carbenos, compostos orgânicos exaustivamente utilizados como catalizadores em reações químicas. Um dos elementos dessa família, o escorregadio hidroximetileno (HCOH) comparece em muitas reações, mas ninguém conseguia observá-lo isoladamente. Sua presença sempre foi atestada por meio de medidas indiretas. Era como se apenas seu rastro ou sua sombra fossem percebidos.

Em 2008, seguindo a máxima do químico estadunidense George Claude Pimentel (1922-1989), que, diante da dificuldade em identificar moléculas efêmeras, aconselhava: “resfria, baby”, Schreiner e colegas produziram HCOH em alta temperatura (1.000 °C) e imediatamente o congelaram numa matriz inerte de argônio a uma temperatura de 11 °Kelvin (-262 ºC). Esse procedimento resultou no isolamento do HCOH.

Escolha nada óbvia

A mesma técnica foi utilizada no trabalho publicado no último dia 10. Mas, dessa vez, os pesquisadores prepararam um composto mais complicado, o metilhidroxicarbeno (H3C-C-OH), primo do hidroximetileno (HCOH), e obtiveram um resultado pra lá de inesperado.

A equipe de Schreiner verificou que esse composto complexo pode se transformar em etenol (CH2CHOH) ou etanal (CH3CHO) por meio de um simples reposicionamento de um de seus átomos de hidrogênio.

Se o hidrogênio ligado ao oxigênio saltar para o carbono isolado forma-se o etanal. Já a formação do etenol ocorre quando um dos hidrogênios ligados ao carbono salta para o carbono isolado.

O problema é que esses rearranjos moleculares requerem energia. É como se o hidrogênio tivesse duas montanhas a sua frente. Ele precisa escalar uma montanha de 22,6 kcal/mol para chegar ao etenol e uma de 28 kcal/mol para chegar ao etanal. Surpreendentemente, em vez de escolher a montanha mais baixa, o hidrogênio escolheu a mais alta.

Experimento liderado por Peter Schreiner
Em experimento liderado por Peter Schreiner, um átomo de hidrogênio, diante de duas ‘montanhas’ de energia, escolheu a mais energética, surpreendendo os pesquisadores e anunciando uma grande mudança nas teorias da química. (esquema: Carlos Alberto dos Santos)

Do mesmo modo que os humanos precisam de energia para escalar uma montanha, o hidrogênio precisa de energia para vencer a barreira energética. Uma maneira de lhe fornecer energia é aquece-lo, mas como o experimento foi feito em baixíssima temperatura (11 K), não havia energia suficiente para o hidrogênio vencer as barreiras energéticas, nem a do etenol e muito menos a do etanal. Portanto, a explicação plausível é de que o etanal se formou por efeito túnel.

Mas, você há de perguntar: por que o hidrogênio escolheu o túnel que leva ao etanal e não o que leva ao etenol? Por uma razão simples e bela: a montanha de 28 kcal/mol é bem mais estreita do que a de 22,6 kcal/mol e, portanto, requer menos energia para ser atravessada. O hidrogênio, que não é bobo, resolve economizar energia indo para o lado do etanal.

Essa visão qualitativa, carregada de metáfora, tem suporte científico. Cálculos convincentes têm mostrado que a probabilidade de tunelamento depende diretamente da largura e da raiz quadrada da altura do objeto a ser transposto. Portanto, a dependência na largura é muito maior do que na altura.

Os resultados do estudo estão recheados de consequências interessantes, para além das aplicações tecnológicas que certamente advirão

Os resultados obtidos pela equipe de Schreiner estão recheados de consequências interessantes, para além das aplicações tecnológicas que certamente advirão. Uma delas poderá ter considerável peso histórico.

Se o tunelamento nas reações químicas se apresentar como um mecanismo geral nos casos envolvendo hidrogênio, estaremos testemunhando uma mudança de paradigma, de uma teoria semiclássica, a TST, com mais de 70 anos de sucesso, na qual o tunelamento comparecia como uma correção secundária, para uma teoria inteiramente quântica, ainda engatinhando no universo da química orgânica, na qual o tunelamento desempenha papel dominante.

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana