Um anti-racista à frente de seu tempo

 

Um dos poucos retratos sobreviventes do grande anatomista anti-racista alemão Friedrich Tiedemann.

Com a aproximação do dia 13 de maio, nossos pensamentos se voltam para a Lei Áurea de 1888. Nesse aspecto, 2007 é um ano especial, porque no dia 23 de fevereiro comemoramos 200 anos da abolição do tráfico de escravos pelo Reino Unido. Fundamental na promoção desse evento memorável foi William Wilberforce (1759-1833), membro do parlamento inglês. Ainda foram necessários outros 26 anos de trabalho árduo de Wilberforce e outros abolicionistas até que os escravos no Império Britânico fossem todos libertados em 1833. Mas o bicentenário da abolição do tráfico nos dá uma oportunidade de prestar tributo à coragem e integridade moral de todos – brancos e negros – que militaram pela extinção da escravatura na Inglaterra, no Brasil e no resto do mundo.

O herói de nossa coluna de maio não será o festejado Wilberforce, mas um anatomista alemão menos conhecido, Friedrich Tiedemann (1781-1861), que em 1836 publicou no Philosophical Transactions of the Royal Society of London um admirável e revolucionário artigo intitulado “Sobre o cérebro do Negro, comparado com o do Europeu e do orangotango”.

Antes de discutirmos o artigo de Tiedemann, vale a pena contextualizá-lo. No século 19 a vasta maioria dos cientistas era composta de homens brancos. Não é nenhuma surpresa, portanto, que os sistemas classificatórios construídos naquela época para estratificar a humanidade em uma escala de valor elegessem as características físicas dos homens brancos como as mais importantes para definir os níveis intelectualmente superiores. Reza o dito popular que a história é escrita pelos vencedores. Por sua vez, a ciência é escrita pelos cientistas, que também não perdem a chance de se glorificarem.

Como detalhadamente descrito pelo meu guru Stephen Jay Gould em seu penetrante livro A falsa medida do homem , nos séculos 18 e 19 o tamanho do cérebro era a principal medida física de inteligência. Praticamente todos os cientistas europeus na primeira metade do século 19 compartilhavam a idéia de que africanos e mulheres pertenciam às formas inferiores de vida humana, porque tinham cérebros menores do que os homens brancos. Tão arraigada era a noção da inferioridade biológica dos africanos na Europa daquela época, que até os próprios abolicionistas acreditavam nela e desejavam a libertação dos escravos por razões humanitárias, sem contudo estarem dispostos a considerá-los intelectualmente iguais aos europeus.

A intervenção de Tiedemann
A principal voz que se levantou na Europa contra esse “dogma” foi a de Friedrich Tiedemann, especialmente em seu artigo publicado em 1836 (clique aqui para baixar o arquivo, que tem 4,2 Mb), o único que ele escreveu em inglês em toda a sua vida. Ele próprio dá pistas para a razão disso na sua introdução:

“Tomo a liberdade de apresentar à Royal Society um artigo sobre um tópico que me parece de grande importância para a história natural, anatomia e fisiologia do Homem, sendo também interessante do ponto de vista político e legislativo. Naturalistas de renome como Camper, Soemmerring e Cuvier consideram os Negros uma raça inferior à Européia em organização e poderes intelectuais, tendo muita semelhança aos macacos. Naturalistas de menor autoridade têm exagerado essa opinião. Se a idéia fosse correta, o Negro ocuparia uma posição em sociedade diferente da que recentemente lhe foi atribuída pelo nobre Governo Britânico”. Tudo indica então que Tiedemann tenha escrito em inglês para homenagear os esforços de Wilberforce e do Parlamento Britânico na libertação dos escravos!

O artigo de Tiedemann é um exemplo da aplicação sistemática e criteriosa de metodologia científica de comparação de grupos. Apesar de certa fragilidade das técnicas estatísticas usadas, apontadas em um ensaio de Stephen Jay Gould, o artigo de Tiedemann usa o método científico moderno, contrastando com o padrão da época, que consistia na utilização de exemplos isolados, considerados “típicos”, para “comprovar” conclusões já tomadas a priori .

Podemos dividir o artigo em duas partes, com objetivos e metodologias distintos. A primeira comparava o tamanho do cérebro entre os sexos. Tiedemann confronta diretamente o peso do cérebro de 28 homens e 11 mulheres européias, chegando à sua primeira grande conclusão, que passo a traduzir literalmente:

“Embora Aristóteles tenha registrado que o cérebro da mulher é menor que o do homem em termos absolutos, ele não é menor em comparação com o corpo, porque o corpo feminino é geralmente mais leve do que o masculino. O cérebro feminino, na maioria das vezes, é até maior que o dos homens, em relação ao tamanho do corpo”.

Tamanho do cérebro e “raças”

Superfície ventral do cérebro do negro Honoré, usado por Tiedemann para verificar que a arquitetura encefálica de africanos e europeus era a mesma.

Tiedemann inicia a segunda parte do texto fazendo a comparação do tamanho do cérebro entre as diferentes “raças”, com ênfase para africanos e europeus. Para tal, ele identificou em vários museus crânios de 38 homens africanos, 77 europeus, 24 asiáticos, 38 oceânicos e polinésios e 24 ameríndios (incluindo um índio Botocudo do Brasil). Através do forame magno ele encheu completamente a cavidade de cada crânio com pequenas sementes de um cereal (o milhete) e depois as esvaziou. Pesando o cereal, ele obteve uma medida do volume intracraniano e chegou à sua segunda grande conclusão:

“É evidente pela comparação da capacidade craniana do Negro com a do Europeu, Mongólico, Americano e Malaio que a cavidade do crânio do Negro não é menor do que a do Europeu nem que as de outras raças”.

Ele também comparou a anatomia do sistema nervoso central de um único negro com a de europeus e a do orangotango, atingindo assim a sua importante conclusão final:

“O cérebro é sem dúvida o órgão da mente. Ele é a parte de nosso corpo que nos dá a consciência de nossa própria existência e é através dele que recebemos as impressões sensoriais, conduzidas até o cérebro pelos nervos. No cérebro, as percepções são comparadas e combinadas para produzir idéias. […] Em resumo, o cérebro é o instrumento através do qual todas as operações chamadas intelectuais são exercitadas […]”

E mais importante: “Como os dados que fornecemos simplesmente provam que não há diferenças substantivas ou essenciais entre o cérebro do africano e do europeu, podemos concluir que não é possível admitir que existam diferenças inatas em faculdades intelectuais entre eles. Isto tem sido negado por filósofos, naturalistas e exploradores, que afirmam que a raça Etiópica é naturalmente inferior à Européia em poderes morais e intelectuais. Os dados nos quais estas opiniões se baseiam são suposições errôneas ou deduções anatômicas ou fisiológicas falsas, ou observações superficiais feitas por viajantes preconceituosos”.

Maravilhoso, não? Principalmente se considerarmos que mesmo nos dias de hoje, em muitos lugares, ainda persiste o infame e nocivo paradigma racista da inferioridade biológica dos africanos. Poderíamos perguntar qual foi a repercussão do sensacional artigo de Tiedemann no resto do século 19.

Para obter uma estimativa rápida (e superficial) de seu impacto, procurei referências sobre ele em três livros: A descendência do homem , de Charles Darwin (1871), Evidence as to man’s place in nature [Evidência do lugar do homem na natureza] ,de Thomas Huxley (1863), e um terceiro texto menos conhecido, que garimpei em um sebo de Londres, The races of man and their geographical distribution [As raças do homem e sua distribuição geográfica], de Charles Pickering (1854). Nenhum dos três cita o trabalho de Tiedemann, sinal de que o anti-racismo do grande anatomista alemão estava realmente muito à frente do seu tempo!

Um pequeno mundo
É de conhecimento geral que vivemos em um “pequeno mundo”. Uma manifestação desse conceito (não incontroversa, diga-se de passagem) originou-se há exatamente 40 anos com o psicólogo Stanley Milgram, que postulou que dois americanos escolhidos ao acaso estavam conectados em média por uma cadeia de seis pessoas conhecidas. Na Inglaterra do século 19 os graus de conectividade eram bastante mais próximos. Os protagonistas desta coluna, por exemplo, estão todos intimamente relacionados entre si, como veremos a seguir.

Camafeu abolicionista produzido por Josiah Wedgwood a pedido de William Wilbeforce no final do século 18. O texto diz: “Am I not a man and a brother?”
(Não sou também um homem e um irmão?).

William Wilberforce convenceu seu amigo Josiah Wedgewood (1730-1792), criador das famosas porcelanas inglesas, a produzir camafeus abolicionistas (ver figura) com a efígie de um negro em grilhões e com os dizeres: “Am I not a man and a brother?” (Não sou também um homem e um irmão?). Josiah Wedgwood era avô de Emma, a esposa de Charles Darwin.

A publicação do livro de Darwin A origem das espécies em 1859 causou grande furor na Inglaterra. Com saúde frágil, o autor permaneceu isolado em sua residência rural e a defesa da causa evolucionista foi assumida pelo jovem Thomas Huxley (1825-1895), apelidado de “o buldogue de Darwin”. Huxley também era um brilhante pesquisador e tornou-se um grande especialista no estudo da anatomia comparada dos grandes primatas, incluindo o Homo sapiens . O grande precursor desses estudos foi Friedrich Tiedemann, com sua descrição pioneira do cérebro do orangotango em 1826 e seu magnífico artigo de 1836.

Em 30 de junho de 1860 houve um debate legendário de Huxley com o arcebispo de Oxford que ironicamente indagou se o evolucionista descendia dos macacos pelo lado de sua avó ou de seu avô. Huxley respondeu que não tinha nenhuma vergonha de ser descendente de macacos, mas que teria vergonha de ser descendente de um homem que usasse retórica e falácias para esconder a verdade! A partir desse incidente Huxley passou a se intitular um “episcopófago” (ou seja, um comedor de bispos). O nome do reacionário arcebispo de Oxford era Samuel Wilberforce e ele era o terceiro filho do grande abolicionista William Wilberforce. Ciclo fechado – QED.

A luta continua
Termino com uma coda melancólica, em escala menor. Enquanto o mundo comemora 200 anos da abolição do tráfico de escravos no Reino Unido, infelizmente precisamos nos conscientizar de que em 2007 ainda há milhões de pessoas vivendo em regime de escravidão. Não se trata “apenas” de gente com salário ínfimo ou em condições subumanas, mas de trabalho não-remunerado sob ameaça de violência física. A BBC produziu uma série de quatro programas de rádio, chamados “Escravidão Hoje” , que demonstra dramaticamente a magnitude do problema no mundo.

Aqui nos nossos tristes trópicos também temos milhares de pessoas sujeitas à prostituição infanto-juvenil e ao trabalho forçado no campo. E é deprimente constatar que periodicamente a imprensa noticia que conhecidos membros de nossa sociedade e até alguns políticos estão envolvidos nessa vil exploração do nosso povo. Precisamos urgentemente de um Wilberforce no Congresso Nacional.


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
11/05/2007