Um Nobel tardio

O Prêmio Nobel de Física deste ano tem duas características notáveis. A primeira é que ele foi atribuído a cientistas que inventaram duas tecnologias revolucionárias e perfeitamente complementares. A metade do prêmio foi concedida ao chinês Charles Kuen Kao, pela invenção da fibra ótica. A outra metade foi dada ao canadense Willard Sterling Boyle e seu colega norte-americano George Elwood Smith, pela criação do dispositivo de carga acoplada (CCD, na sigla em inglês), utilizado como sensor de imagem.

Kao publicou seu primeiro trabalho sobre fibra ótica em 1966, nos anais da Institution of Electrical Engineering. Quatro anos depois, Boyle e Smith apresentaram o CCD no Bell Systems Technical Journal. Esse longo intervalo de tempo entre a divulgação da invenção e a premiação (43 anos para Kao e 39 para Boyle e Smith) é a segunda característica notável do Prêmio Nobel de Física deste ano. Entre os mais de 100 prêmios concedidos até hoje, apenas cinco apresentam intervalo superior a 40 anos entre a descoberta e a premiação.

Ganhadores do Prêmio Nobel de Física de 2009
O Prêmio Nobel de Física deste ano foi dividido entre o chinês Charles Kuen Kao (à esquerda), pela invenção da fibra ótica, e o canadense Willard Sterling Boyle (no centro) e seu colega norte-americano George Elwood Smith (à direita), pela criação do CCD, dispositivo usado como sensor de imagem (fotos: David Dobkin e National Academy of Engineering).

As duas invenções desempenham papéis importantes na atual sociedade da informação, mas o leque de aplicações tecnológicas do CCD é bem mais amplo. De sofisticados instrumentos científicos às mais simples máquinas fotográficas digitais, passando por inúmeros tipos de sensores, o CCD é uma presença constante em nosso cotidiano. Por essa razão, vamos dedicar esta coluna à sua descrição.

Antes de enveredarmos pelos detalhes conceituais, vamos apresentar uma visão panorâmica. O CCD é um dispositivo que transforma impulsos luminosos em dígitos. Esse processo gera uma imagem digital. No início do processo, quando o feixe luminoso interage com a superfície do CCD, ocorre a liberação de elétrons por meio do efeito fotoelétrico. A quantidade de elétrons liberados é proporcional à intensidade do feixe. Para a captura de uma imagem colorida, é necessária a utilização de filtros para luz verde, vermelha e azul sobre a superfície do CCD. Um sofisticado sistema eletrônico transforma a carga elétrica liberada pelo efeito fotoelétrico em sinal digital. Agora vejamos como a invenção de Boyle e Smith tornou isso possível.

Uma ideia simples e elegante
Em 1969, os pesquisadores trabalhavam na divisão de semicondutores dos Laboratórios Bell, quando tiveram os investimentos em suas pesquisas ameaçados de redução, caso não descobrissem alguma inovação tecnológica para competir com as memórias de bolhas magnéticas, então em desenvolvimento em outra divisão da empresa. No dia 17 de outubro de 1969, depois de uma reunião que não durou mais de uma hora, eles esquematizaram a estrutura básica do CCD. A ideia era estonteantemente simples e elegante, mas os autores enfrentaram o ceticismo de alguns dos seus colegas. Algumas semanas depois, resolveram testar o modelo. Precisaram de apenas uma semana para fabricar o dispositivo e realizar os ensaios experimentais.

O elemento básico do CCD é uma espécie de sanduíche. A primeira fatia é um semicondutor (por exemplo, silício dopado com boro), a segunda é um óxido de silício e a última fatia é uma placa metálica. É possível criar, na camada semicondutora, uma espécie de cova. Tecnicamente, o sanduíche funciona como um capacitor (componente que armazena energia em um campo elétrico), sendo a cova conhecida como poço de potencial. É nesse poço de potencial que os elétrons liberados pelo efeito fotoelétrico são acumulados. Esse tipo de capacitor é conhecido como capacitor metal-óxido-semicondutor, ou simplesmente capacitor MOS. Ele tem dimensões micrométricas (o micrômetro é a bilionésima parte do metro) e é fabricado por meio de processos litográficos.

O CCD é constituído de vários desses capacitores colocados lado a lado e separados por uma distância de aproximadamente 3 micrômetros. A funcionalidade inicialmente imaginada para o dispositivo consistia em transferir carga de um sanduíche para o vizinho. Dessa forma, a carga acumulada no elemento de uma ponta poderia ser transferida até o elemento da outra ponta, onde um sistema eletrônico poderia armazenar e manipular a informação.

Para o funcionamento do CCD, são necessários três capacitores (tripleto) para registrar um bit. Assim que o funcionamento básico do dispositivo foi demonstrado, George Smith e dois colegas de laboratório construíram o primeiro protótipo de 8 bits para transferência de registros. Portanto, o protótipo foi construído com 24 capacitores, distribuídos lado a lado ao longo de aproximadamente 1.300 micrômetros. O dispositivo foi conectado a um sistema eletrônico para geração e controle de sinais analógicos e digitais. Em cada tripleto, o sinal é processado em 6 microssegundos, de modo que um sinal de 8 bit é registrado a cada 48 microssegundos. Se nesse intervalo aparecer alguma carga elétrica, o sistema registra bit “1”, caso contrário registra bit “0”. É assim que um sinal analógico é transformado em um sinal digital.

Na descrição desse protótipo, publicada na edição de 1º de agosto de 1970 da Applied Physics Letters, os autores apresentaram a primeira imagem obtida com o CCD. Imediatamente, o dispositivo passou a ser empregado como sensor de imagem e tornou-se presente em muitas das nossas ações cotidianas.

Para que o CCD seja usado como sensor de imagem, é necessária a colocação de material fotossensível (fotodiodo) na superfície do dispositivo. Nessa configuração, cada tripleto forma um pixel, sobre o qual se coloca um filtro de cor, confeccionado com diferentes tipos de materiais. Como o olho humano é mais sensível ao verde, 50% da superfície do CCD é coberta com filtros para essa cor. O restante da superfície é dividido entre filtros vermelhos e azuis. Na saída, o sistema eletrônico recompõe a imagem colorida.

Aplicações comerciais
O primeiro CCD disponível no mercado foi construído pela empresa norte-americana Fairchild Imaging em 1973 e continha 10.000 pixels (área de 100×100 pixels), ou seja, 0,01 megapixel. Em 1975, Steve J. Sasson, engenheiro da Kodak, utilizou esse CCD para construir a primeira máquina digital, ainda em preto e branco.

Esse protótipo evoluiu rapidamente para versões comerciais mais potentes. No lugar do insignificante 0,01 megapixel, a Kodak desenvolveu, no final dos anos 1980, o seu famoso sensor de 1,3 megapixel, que foi utilizado em câmeras digitais de diversos fabricantes, incluindo a Nikon. Atualmente, máquinas ultracompactas são fabricadas com mais de 10 megapixels.

A parte mais visível dessa revolução tecnológica é naturalmente aquilo que aparece nas lojas: máquinas fotográficas, filmadoras, celulares, sensores automotivos, entre outros produtos. No entanto, tem sido extraordinário o papel desempenhado pelo CCD em diversos ramos da pesquisa científica. Um exemplo magnífico é a fotografia do aglomerado de galáxias Abell 2218, obtida com uma câmera instalada no telescópio espacial Hubble. Captada no ano de 2000, a foto mostra um impressionante exemplo de lentes gravitacionais.

Aglomerado de galáxias Abell 2218
Um exemplo da aplicação do CCD na pesquisa científica é a fotografia do aglomerado de galáxias Abell 2218, captada em 2000 com uma câmera instalada no telescópio espacial Hubble (foto: Andrew Fruchter/ Nasa).

Não há, virtualmente, área científica que não tenha se beneficiado dessa tecnologia. Dispositivos CCD têm aumentado de modo inimaginável há algumas décadas a capacidade funcional dos microscópios. Observações in situ de células e tecidos têm permitido aos médicos detectarem pequenos desvios da normalidade, sobretudo na endoscopia. Mais extraordinárias ainda são as aplicações que usam microcâmeras instaladas em cápsulas, cujas imagens são enviadas por comunicação sem fio.

Tecnologia ameaçada?
À primeira vista, o Prêmio Nobel foi concedido no momento em que a tecnologia CCD começa a ser ameaçada pelos sensores de imagem baseados na tecnologia metal-óxido-semicondutor complementar (CMOS, na sigla em inglês). De fato, os dois tipos de sensores surgiram na mesma época, mas algumas vantagens tecnológicas do CCD (baixo ruído, pixels menores, alta sensibilidade, entre outras) fizeram com que a indústria deixasse de lado o desenvolvimento de sensores CMOS.

No entanto, as vantagens do CMOS em relação ao seu concorrente, sobretudo o baixo consumo, o alto nível de integração, o baixo custo e o acesso aleatório, vêm, desde a década passada, motivando laboratórios acadêmicos e industriais a investirem na fabricação desses dispositivos. Entre os pioneiros dessa nova era podemos destacar a equipe liderada por Eric Fossum, do Jet Propulsion Laboratory (JPL), da Nasa (a agência espacial norte-americana), que fabricou, no início dos anos 1990, uma câmera eletrônica em um único chip. Em 1995, o pessoal do JPL fundou a empresa Photobit para implementar e comercializar a tecnologia. Atualmente, a Photobit produz mais de 50 modelos de sensores CMOS e já transferiu a tecnologia para os Laboratórios Bell e para a Kodak, entre outras empresas.

Contrariando Eric Fossum, que entende ser o CMOS um competidor do CCD, James Janesick, da Sarnoff Corporation, e Gloria Putnam, da Kodak, entendem que as duas tecnologias deverão ser cada vez mais associadas para a fabricação de sensores híbridos.

Já em 1999, colegas de Eric Fossum no JPL propunham a fabricação de sensores híbridos. Em 2004, a Panasonic patenteou um sensor híbrido, hoje comercializado com o nome de Live MOS e usado em máquinas da Leica, da Olympus e da própria Panasonic. Finalmente, a pioneira Fairchild Imaging também entrou no jogo e, desde 2007, vem produzindo seus sensores híbridos.

Se as tendências observadas nos laboratórios acadêmicos e industriais se confirmarem, é provável que Janesick e Putnam estejam com a razão. As duas tecnologias têm tudo para um casamento perfeito. O CCD é imbatível na qualidade da imagem, ao passo que o CMOS é o ícone do processamento eletrônico de sinais analógicos e digitais. Mas a dúvida permanece: no final, teremos competição ou colaboração entre CCD e CMOS?

 

Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
29/10/2009