Uma vela no escuro

A expressiva visão de Francisco Goya de duas bruxas a caminho de um Sabá. Observem a iconografia fálica da vassoura voadora.

Em 31 de outubro comemorou-se nos Estados Unidos e outros países de língua inglesa Halloween, o dia das bruxas. Entre os celtas essa era uma data de festividades pagãs. Após o papa Gregório III ter estabelecido 1º de novembro como o Dia de Todos os Santos, no século 8, a efeméride passou a chamar-se Halloween, que é uma contração de All Hallows’ Day Eve (ou seja, “véspera do dia de Todos os Santos”).

Em outras mitologias os dias das bruxas eram diferentes. Por exemplo, na tradição germânica e escandinava, ele era 30 de abril, a noite de Walpurgis, detalhadamente descrita por Goethe no seu Fausto . No leste europeu era o dia 23 de junho, véspera de São João, como imortalizado na famosa peça orquestral Uma noite no Monte Calvo , de Mussorgsky (1839-1881). Hoje crianças brincam de bruxas no Halloween e podemos discorrer sobre esse tema com leveza porque sabemos perfeitamente bem que elas não existem. Mas não foi sempre assim….

No início do século 16, deu a louca no mundo ocidental. Bruxas, que até então se limitavam a povoar mitos pagãos tornaram-se subitamente reais e ubíquas, habitando o dia-a-dia das pessoas. Era imperativo identificá-las e se livrar delas, purificando o mundo a ferro e a fogo. Criou-se uma histeria em massa – a “caça às bruxas” –, um fenômeno bizarro e cruel que perdurou pelos séculos 16 e 17. Nesse período, estima-se que cerca de 100 mil pessoas foram torturadas e mortas nas fogueiras de diversos países europeus. Ao contrário do que muitos pensam, esse não foi um fenômeno medieval, mas sim do início do período moderno, da era dos descobrimentos e do Renascimento.

Talvez sintomaticamente, foi também nesse período que se iniciou o tráfico de escravos da África para as Américas, que viria a vitimar 20 milhões de pessoas. Em um recente artigo na Folha de S. Paulo , tentei traçar um paralelo entre a crença na existência das bruxas e a crença na existência das raças humanas. O texto se encerrava com a seguinte frase: “Um pensamento reconfortante é que, certamente, a humanidade do futuro não acreditará em raças mais do que acreditamos hoje em bruxaria. E o racismo será relatado como mais uma abominação histórica passageira, assim como percebemos hoje o disparate que foi a perseguição às bruxas”.

O Malleus Maleficarum inicialmente publicado em 1498 foi o mais importante manual de protocolos inquisitoriais da “caça às bruxas”.

Mas voltemos ao século 16. Também ao contrário do que é geralmente pensado, os únicos culpados pela histeria da caça às bruxas não foram a Igreja Católica e seus inquisidores. O fenômeno foi igualmente observado em países protestantes e a maioria das condenações das “bruxas” ocorreu de fato em tribunais laicos. Porém, foi a Igreja Católica que estabeleceu os protocolos inquisitoriais, especialmente através do manual Malleus Maleficarum(Martelo das Bruxas – observe-se o possessivo feminino Maleficarum: a caça às bruxas teve um importante componente de sexismo).

 

Uma das estratégias maquiavélicas do Malleus foi o estabelecimento da regra de que não acreditar em bruxas era por definição uma heresia punível com a fogueira! Assim havia uma lógica de autoperpetuação na loucura do fenômeno, pois embora somente a crença em bruxas não possa ser considerada uma causa suficiente para explicá-lo, certamente era uma causa absolutamente indispensável para a sua ocorrência e continuidade.

 

Subitamente, no início do século 18 a caça às bruxas perdeu força e se extinguiu. A que se deveu esta transformação?

 

Mudança de paradigma

 

O século 17 foi um período prolífico de inovações técnicas e instrumentais que ampliaram a capacidade humana de observar e entender o mundo. Paralelamente emergiu uma nova maneira de pensar, caracterizada pela exigência da comprovação empírica de todas as crenças, tendo assim características marcadamente anti-autoritárias. Nada ilustra isto melhor do que o moto da Royal Society criada na Inglaterra em 1660: Nullius in verba (“a palavra de ninguém é suficiente”). Era a revolução científica que chegava. Com ela, tornou-se impossível a credulidade continuada na existência das bruxas. Ocorreu uma irreversível fratura epistêmica – o que o historiador da ciência Thomas Kuhn chamou de mudança de paradigma. A caça às bruxas então extinguiu-se entropicamente.

 

Para mim, essa história ilustra a capacidade maravilhosa da ciência de agir como uma vela no escuro, iluminando a realidade e exorcizando demônios. Nesse sentido, a ciência é a nossa ferramenta intelectual mais poderosa para humanizar o universo e a nossa experiência. Ela transforma o cosmo misterioso e aterrorizante em apenas um “universo”, que inevitavelmente irá, mais cedo ou mais tarde, render-se ao homem e revelar-lhe todos seus segredos. E nos seus momentos mais gloriosos ela extrapola este rigoroso senso de realidade com uma excitante sensação de possibilidade.

 

Este é o espírito do humanismo científico, que apela à razão, e não à revelação ou à autoridade religiosa, como um meio de se relacionar com o mundo natural e de estabelecer uma base estritamente humana para a construção de nosso sistema moral. O humanismo científico acredita que através do exercício da razão e do método científico a humanidade pode resolver seus problemas com sucesso e avançar seu conhecimento continuamente.

 

Entretanto, deve sempre ser lembrado que ele distingue-se do positivismo arraigado por rejeitar a noção de que a ciência pode ter a resposta definitiva para todas as questões humanas. Como dizia o biólogo Julian Huxley, fundador da International Humanist and Ethical Union, uma filosofia humanista lastreada na ciência deve concentrar-se em perguntas que podem ser efetivamente respondidas, deixando as outras para os metafísicos.

 

O humanismo científico de Carl Sagan

 

Carl Sagan (1934-1996).

Um humanista científico de elevadíssima estirpe foi o astrônomo americano Carl Sagan (1934-1996), que dedicou sua vida à divulgação da ciência e à luta contra o obscurantismo, a pseudociência e a anticiência. Seu livro intitulado O mundo assombrado por demônios: a ciência como uma vela na escuridão, de onde peguei emprestado o título desta coluna, está disponível no Brasil e recomendo muito a sua leitura. Nele, Sagan enfatiza o papel da ciência não como um corpo de conhecimento, mas como uma maneira de pensar criticamente e questionar o mundo que nos cerca.

 

Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra “ciência” vem do latim scientìa que significa ”conhecimento, saber, arte, habilidade, prenda”. Assim, a ciência não é um corpo arcano de métodos e práticas inaccessíveis ao cidadão comum, mas é simplesmente a prática da imaginação e do pensamento crítico. Esse exercício, na sua acepção mais plena, extrapola os limites que a sociedade artificialmente impõe à ciência e constitui a base de uma cidadania responsável, a fundação daquilo que podemos chamar (pedindo emprestada uma expressão do filósofo Ricardo Fenatti) de democracia científica.

 

Sagan via que no âmago da ciência deve haver um equilíbrio entre a imaginação e abertura mental a novas idéias por um lado e a disciplina de submeter as nossas noções mais sagradas a um escrutínio cético impiedoso e à necessidade da verificação experimental pelo outro. A credibilidade da ciência não depende da objetividade absoluta nem da neutralidade ideológica dos seus praticantes. Seu sucesso é garantido pela adoção por toda a comunidade de regras rigorosas de conduta metodológica. Em outras palavras, a ciência é uma atividade fundamentalmente comunitária e social.

 

Alie-se a isto a compreensão pelos cientistas de que o corpus da ciência é provisório e dinâmico. Ao contrário das pseudociências e das religiões, que são dogmáticas e intolerantes à críticas, a ciência valoriza exatamente aqueles que questionam, superam e desbancam suas idéias mais valorizadas e seus membros mais reverenciados.

 

Há uma frase de Einstein que Carl Sagan gostava de citar e com a qual encerraremos esta coluna: “Toda a nossa ciência, confrontada com a realidade, é primitiva e pueril – mas é a coisa mais preciosa que temos!”.

Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
10/11/2006