De ameaça a aliada

Pode vir de uma serpente peçonhenta uma nova arma para tratar doenças trombóticas, causadas por coágulos em vasos sangüíneos. O estudo da estrutura e da função de uma proteína extraída do veneno de uma espécie de jararaca brasileira poderá ser usado para o desenvolvimento futuro de um novo fármaco capaz de dissolver esses coágulos.

Uma proteína extraída do veneno da jararaca-do-rabo-branco (Bothrops leucurus) poderá ser usada na produção de um fármaco capaz de dissolver coágulos sangüíneos (foto: Ivan Sazima).

A pesquisa, que está sendo realizada durante o doutorado do biólogo Rodrigo Novaes Ferreira no Departamento de Bioquímica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tem como objeto a leucurolisina-A (leuc-A), proteína não hemorrágica presente no veneno da serpente Bothrops leucurus. Conhecida como jararaca-do-rabo-branco, essa serpente é encontrada desde o norte do Espírito Santo até Alagoas e Ceará.

A caracterização bioquímica da leuc-A já havia sido feita em estudo anterior realizado na Fundação Ezequiel Dias (Funed), também em Minas Gerais. Na época, os pesquisadores descobriram a atividade fibrogenolítica da enzima, ou seja, sua capacidade de dissolver a fibrina, proteína cujo acúmulo é responsável pela formação de coágulos que podem originar síndromes coronárias agudas, derrames e outras doenças trombóticas arteriais e venosas.

Ferreira conta que as pesquisas mostraram que a leuc-A é semelhante, em termos bioquímicos, à enzima fibrolase, extraída do veneno de outra serpente e estudada por cientistas estrangeiros para a produção de fármacos. “Esse grupo acrescentou outra molécula no fim da molécula de fibrolase que funciona como uma espécie de âncora para fixá-la nos coágulos e permitir sua dissolução”, completa.

Manipulação molecular
Para que a leuc-A também possa ser usada no futuro para produzir fármacos, os pesquisadores da UFMG, em colaboração com a Funed, trabalham agora na definição da estrutura da molécula. Com esses resultados completos em mãos, será possível inferir alterações moleculares para aumentar a eficácia da enzima na dissolução de coágulos sangüíneos e eliminar seus eventuais efeitos tóxicos no organismo.

A análise estrutural da leuc-A, iniciada em 2007, é feita a partir de sua cristalização. Primeiro, a proteína é retirada do veneno e purificada. Em seguida, o material passa por testes que verificam se os graus de pureza e homogeneidade são adequados, para que possam ser iniciados os experimentos de cristalização.

As condições de cristalização podem ser manipuladas para que se obtenham cristais cada vez maiores e com faces mais planas. Os cristais são então colocados em um equipamento de difração por raios X, que, após analisar os dados, gera o chamado modelo cristalográfico da molécula e permite sua definição estrutural.

O trabalho de cristalização da leuc-A e observação de sua estrutura está sendo feito no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), cujos equipamentos possibilitam a análise dos materiais em escala atômica e molecular com alta eficiência. Os resultados foram apresentados na 18ª Reunião Anual de Usuários do LNLS (RAU), realizada na última semana nas instalações do Laboratório, em Campinas (São Paulo).

Segundo Ferreira, o modelo cristalográfico produzido revelou não apenas a estrutura molecular da leuc-A, mas também a presença de um ligante desconhecido (íon ou molécula que se liga ao átomo central) no chamado sítio ativo da enzima, local onde ocorre a reação enzimática. “O ligante foi um bônus, pois geralmente não se consegue cristalizar material semelhante com um ligante no sítio ativo.”

Os pesquisadores pretendem agora eliminar algumas dúvidas no modelo estrutural da leuc-A e elucidar a estrutura do ligante. Ferreira diz que, se o ligante for, por exemplo, um inibidor da enzima, poderia ser usado na produção de um soro contra o veneno da Bothrops leucurus. E acrescenta: “Com a obtenção do modelo cristalográfico, as opções de alterações na molécula para a produção de novos fármacos com atividade trombolítica são quase infinitas.” 

Thaís Fernandes (*)
Ciência Hoje On-line
28/02/2008

(*) A jornalista viajou a Campinas a convite dos organizadores da RAU.