De mãe para filho

Ainda são muitos os casos de bebês que, ao nascerem, recebem das mães uma ‘herança’ indesejada: o vírus HIV. Em busca de solução para o problema, um estudo internacional liderado por pesquisadores brasileiros apresentou, neste mês, novas estratégias terapêuticas capazes de reduzir as chances de transmissão vertical do vírus em casos de mães soropositivas que não receberam tratamento pré-natal contra a doença.

Coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pela Universidade da Califórnia (Estados Unidos), a pesquisa avaliou um grupo de 1.684 recém-nascidos de diversos países (70% deles do Brasil) cujas mães descobriram estar infectadas com o HIV somente no momento do parto. Foi comparada a eficácia do protocolo padrão utilizado nesses casos – o tratamento dos bebês com doses de AZT durante as seis primeiras semanas de vida – com a de estratégias que conjugaram essa terapia com a aplicação de outras drogas: três doses de nevirapina em intervalos de 48 horas em alguns bebês e um tratamento de quinze dias com uma combinação de nelfanivir e lamivudina em outros.

Os resultados, publicados no periódico The New England Journal of Medicine, apontaram que as combinações de medicamentos se mostraram, em geral, cerca de 50% mais eficientes do que a utilização isolada do AZT. A taxa de prevenção da doença com o uso do protocolo padrão no estudo foi de 4,8% dos bebês infectados, já as estratégias alternativas apresentaram índices de 2,2% e 2,5%, respectivamente. Sem qualquer tipo de tratamento, as chances de transmissão vertical sobem para 25%.

Segundo a infectologista Valdilea Veloso, diretora do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Fiocruz) e coordenadora do estudo no Brasil, o procedimento já foi autorizado para utilização no Sistema Único de Saúde e sua adoção está em discussão em diversos outros países.

Em entrevista à CH On-line, Veloso fala sobre a pesquisa e aborda o desafio representado pela transmissão vertical para o sistema de saúde brasileiro. Ela também defende a necessidade de renovar as metodologias de prevenção e controle da Aids no país, destaca a liderança brasileira nas pesquisas internacionais sobre a doença e comenta a possibilidade real de uma cura para a epidemia.

Valdilea Veloso
A infectologista Valdilea Veloso, diretora do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, da Fiocruz. (foto: Peter Ilicciev)

Por que a pesquisa envolveu apenas mães que não sabiam ser portadoras do HIV até o momento do parto?
O procedimento esperado é que todas as mulheres façam o teste durante o pré-natal e, uma vez identificado que são portadoras do HIV, recebam o coquetel contra a Aids. Quando todas as medidas preventivas são tomadas, o risco de transmissão cai para menos de 1% dos casos.

As mães que participaram do estudo representam o grupo em que o sistema de saúde falhou. Se o diagnóstico é feito só na hora do parto ou mesmo depois disso, há uma cascata de oportunidades de prevenção perdidas, muitos bebês já foram infectados, seja durante a gestação, o parto ou a amamentação. Infelizmente, em nosso país, muitas mulheres não sabem que são portadoras do vírus e a cobertura do pré-natal é baixa, alcança cerca de 50% das mães.

A liderança do Brasil no estudo reflete a importância da transmissão vertical para a epidemia no país?
De fato, embora o estudo também tenha sido realizado em muitos países [Estados Unidos, Argentina e África do Sul, além do Brasil], foi desenhado para abordar um problema brasileiro importante. A questão é que, com tudo que existe no Brasil hoje em relação a tratamento e prevenção, não é razoável que tantas crianças sejam infectadas dessa forma no país.

Foi esse pensamento que nos motivou a iniciar o planejamento da pesquisa ainda em 1999. Conseguimos financiamento junto ao NIH [agência de pesquisa médica dos Estados Unidos] em 2003 e o estudo acabou envolvendo muitos centros de pesquisa nacionais – de Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, por exemplo.

Nesse contexto, qual a previsão de aplicação dos importantes resultados obtidos no sistema de saúde nacional?
O artigo foi publicado recentemente, mas já havíamos divulgado os dados do estudo em congressos e dialogado com as instâncias governamentais.

Como as drogas que utilizamos no estudo já estão disponíveis no sistema de saúde brasileiro, o Ministério da Saúde já tomou a decisão de distribuir, além do AZT, a nevirapina nas maternidades

Como as drogas que utilizamos no estudo já estão disponíveis no sistema de saúde brasileiro, o Ministério da Saúde já reuniu seus comitês de pediatria e de prevenção de transmissão do HIV e tomou a decisão de distribuir, além do AZT, a nevirapina nas maternidades. Acredito que isso ocorra em pouco tempo, pois a decisão já foi tomada. Além disso, vale lembrar que os resultados não têm aplicação apenas no Brasil, a combinação de drogas já está sendo recomendada nos Estados Unidos e na Europa e a Organização Mundial da Saúde também já reconhece sua eficácia.

A expectativa do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) é de universalizar o tratamento contra a Aids e zerar a transmissão do vírus HIV entre a mãe e o bebê no mundo até 2015. A senhora acredita que essas metas são realizáveis no Brasil?
Eu vejo que nosso país já esteve melhor, já se destacou mais pelo arrojo das suas propostas para o tratamento e a prevenção da doença. Se continuar como está, acho difícil que o Brasil alcance o controle da transmissão de mãe para filho nesse prazo, mesmo com o uso da nevirapina nas maternidades, pois o pré-natal ainda tem um alcance muito pequeno.

Além disso, apesar de o tratamento para infectados estar disponível no país, existem muitas pessoas com o vírus que não estão identificadas. É preciso uma abordagem mais agressiva em relação a expandir a testagem para o HIV. Como a epidemia no Brasil é concentrada, com incidência bem maior em grupos como homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e usuários de drogas, também precisamos encontrar formas de chegar até essa população de forma adequada. Em resumo, é preciso levar as ações de prevenção a quem mais precisa delas – e não temos tido muito sucesso nisso.

No entanto, os números mais recentes sobre a evolução da transmissão vertical indicam a diminuição do número de crianças contaminadas dessa forma.
Quando você olha os números globais, sim. Mas quando olha estado por estado, isso varia muito. Os resultados de São Paulo, por exemplo, são comparáveis ao que observamos em países desenvolvidos. Mas, especialmente no Norte e no Nordeste, a situação é bem diferente, ainda mais se pensarmos que, se todos recebessem o pré-natal adequado, a taxa de transmissão vertical poderia ser de 1% ou menos. Isso reflete a desigualdade de oportunidade para uma vida saudável. As populações mais pobres recebem cuidados de saúde de qualidade mais baixa e acabam se beneficiando muito menos daquilo que está disponível no Brasil para prevenção do HIV.

Você acredita que todas essas dificuldades possam estagnar o programa de prevenção à Aids do Brasil?
É como se estivéssemos satisfeitos com o que se conseguiu. Se o paciente está estabilizado, mas está no CTI, isso não quer dizer que esteja bem. A nossa epidemia está estabilizada, mas em um patamar alto; não deixou de ser um grande problema de saúde pública.

A nossa epidemia está estabilizada, mas em um patamar alto; não deixou de ser um grande problema de saúde pública

O programa de Aids tem hoje dificuldade em discutir métodos inovadores de prevenção, como a implementação de novas formas de testagem. Em vários países, já se discute a introdução do teste domiciliar do HIV, que será, inclusive, vendido nas farmácias nos Estados Unidos, mas não vemos essa discussão no Brasil. Não é possível testar tantas pessoas – em especial as de maior risco – com a frequência necessária se acharmos que tudo vai ser feito única e exclusivamente no sistema de saúde. Sem inovar, sempre teremos mais pessoas infectadas, uma demanda maior do serviço de saúde e gastos muito maiores.

Por outro lado, o Brasil tem assumido um papel de liderança nas pesquisas internacionais relacionadas à prevenção da Aids.
Sim, cada vez mais o Brasil tem papel de destaque nessa área. A própria Fiocruz tem tido a oportunidade de conduzir diversas pesquisas clínicas que têm contribuído para mudanças efetivas nos guias terapêuticos e até nos paradigmas existente em relação à prevenção.

Desempenhamos papel de liderança, por exemplo, no estudo do ano passado que mostrou que antecipar a administração de antirretrovirais a pessoas com o vírus pode reduzir em 96% os riscos de transmissão em casais sorodiscordantes [pesquisa conhecida como HPTN052, que foi escolhida pela revista Nature como a mais importante de 2011]. Também lideramos os testes clínicos que mostraram que o medicamento truvada pode ser usado na prevenção da doença [pesquisa cujo braço brasileiro também foi coordenado por Veloso].

Casal de mãos dadas
Segundo estudo realizado no ano passado, antecipar a administração de antirretrovirais a pessoas com HIV pode reduzir em 96% os riscos de transmissão do vírus em casais sorodiscordantes. (foto: Guillaume Paumier/ Flickr – CC BY 2.0)


Com tantos resultados recentes positivos, o que esperar para o futuro da luta contra a doença?

Em termos de conhecimento sobre o HIV e formas de transmissão e prevenção da doença, esse é um momento de muito otimismo. O uso de estratégias de tratamento para a prevenção da doença é uma intervenção muito poderosa e animadora. Resultados de prevenção como o do HPTN052 são semelhantes aos de uma vacina.

Outra coisa que traz um otimismo grande é saber que a utilização prévia dos medicamentos diminui o risco de infecção das pessoas que têm maior exposição ao vírus pelo perfil de sua atividade sexual. Com essas duas vertentes, acreditamos que existe a possibilidade real de diminuir muito o impacto da epidemia na população.

Além disso, o tratamento adequado da infecção tem trazido enormes ganhos em termos de qualidade e tempo de vida. O otimismo é tanto que hoje os pesquisadores já começam a falar em trabalhar realmente para a cura, no sentido de manter o HIV numa forma em que não provoque danos à saúde do indivíduo e sem a necessidade de ministrar remédios ou mesmo chegar a uma potencial erradicação da infecção no organismo humano. É claro que isso ainda é algo distante, mas nunca se falou de cura de forma tão concreta quanto agora.