Até hoje, o protozoário Trypanosoma cruzi era conhecido apenas como o agente causador da doença de Chagas. Mas uma pesquisa desenvolvida em parceria por pesquisadores brasileiros e estadunidenses pode transformar o parasita em um importante aliado da ciência na luta contra o câncer.
O estudo, que será publicado na revista PNAS, apresenta uma forte candidata à vacina contra diversos tipos de tumores, composta por T. cruzi atenuado e modificado geneticamente para produzir moléculas características de células tumorais.
Desenvolvida por imunologistas do Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR/Fiocruz), da Universidade Federal de Minas Gerais e do Instituto Ludwig, dos Estados Unidos, a vacina foi capaz de impedir, em ratos, a formação de três tipos de tumores, todos bastante agressivos: melanomas (tipo de câncer de pele), sarcomas e tumores de cólon.
Além disso, ela conseguiu estimular o sistema imunológico dos animais que já tinham a doença a combatê-la. Em testes in vitro com células humanas, o imunobiológico também apresentou resultados positivos e se mostrou eficiente na proteção contra a doença de Chagas.
Segundo os pesquisadores, esta é a primeira vez que um parasita é utilizado como vetor vacinal para tratar outra doença. Os próximos testes serão realizados em cachorros e, se o imunobiológico voltar a apresentar bons resultados, poderá ser testada em humanos dentro de alguns anos.
Câncer mimetizado
Segundo Caroline Junqueira, pesquisadora do CPqRR e uma das autoras do artigo, um dos maiores desafios representados pelo câncer é que a doença provoca uma imunossupressão das defesas do organismo na região onde as células cancerígenas estão localizadas.
“A vacina funciona mimetizando as células tumorais, mas sem suprimir o sistema imunológico, de forma a ensinar ao organismo como destruí-las”, explica.
A utilização do T. cruzi como vetor vacinal tem ligação direta com o perfil imunológico que os pesquisadores desejavam induzir no organismo, uma resposta rápida, forte e de longa duração contra o câncer.
O imunobiológico foi produzido a partir da alteração genética de células do protozoário atenuadas, ou seja, incapazes de causar doença de Chagas. As modificações genéticas deram ao parasita a capacidade de produzir uma molécula muito característica das células tumorais, o antígeno NY-ESO-1.
“Quando o protozoário modificado entra em contato com o organismo, o sistema imune dispara uma forte resposta contra a invasão, inclusive com a produção de anticorpos contra o antígeno tumoral”, descreve Junqueira.
Dessa forma, o corpo estaria preparado para impedir a formação de tumores reais no futuro, pois já teria mecanismos de defesa capazes de identificá-los e destruí-los com rapidez.
A longa duração da proteção que seria conferida pelo imunizante também está relacionada com o parasita, segundo a imunologista. “Como a memória imunológica à infecção pelo T. cruzi é duradoura, o que é essencial para um candidato à vacina, com apenas duas doses o organismo dos ratos ficou protegido a longo prazo”, afirma.
Junqueira destaca, ainda, a especificidade da vacina e sua capacidade de atuar contra diferentes tipos de câncer. “O organismo dos ratos foi induzido a produzir anticorpos específicos contra um antígeno característico de células cancerígenas em geral; assim, não há o risco de estimular o sistema imunológico a atacar células saudáveis e a vacina não ficará restrita a apenas um tipo de tumor”, ressalta a imunologista.
Além do efeito preventivo, os pesquisadores prevêem que, caso se saia bem nas próximas fases de testes clínicos, a vacina também poderá ser utilizada no tratamento do câncer, com grande vantagem sobre as terapias atuais.
“Ela poderá ser utilizada para estimular o sistema imunológico a identificar e combater as células cancerígenas”, explica a pesquisadora. “Sem a utilização de drogas sintéticas, os efeitos colaterais serão muito menores e as chances de sucesso do tratamento, maiores”, avalia.
Um estímulo à ciência brasileira
Junqueira destaca a importância do desenvolvimento da vacina para a pesquisa nacional. “Apesar da colaboração com o Instituto Ludwig, a tecnologia utilizada para modificar geneticamente o protozoário foi proposta e desenvolvida no Brasil”, comemora.
“A produção de ciência de ponta em uma área de grande visibilidade, que recebe muita atenção e investimento no mundo todo, representa uma enorme conquista para o país.”
Segundo a imunologista, ainda existem muitos desafios a serem superados para o imunizante tornar-se disponível para a sociedade. Mas a expectativa é grande, uma vez que a ciência ainda busca alternativas melhores para lutar contra o câncer.
“As previsões da Organização Mundial da Saúde sobre incidência de casos de câncer nos próximos anos não são nada animadoras e os tratamentos existentes possuem muitos efeitos colaterais e nem sempre são eficientes”, avalia.
Além disso, Junqueira destaca que a vacina pode ter desdobramentos importantes como a prevenção da doença de Chagas e uma possível utilização veterinária.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line