Desnaturalizar o olhar

Belo Horizonte tem 226 favelas, onde vivem cerca de 500 mil pessoas, ou 22% da população da capital mineira. No Rio de Janeiro, que contabiliza mais de mil favelas na região metropolitana, só o Complexo da Maré tem 140 mil habitantes. Para além das diferenças geográficas, dos números e da diversidade, as comunidades que se reúnem nesses espaços se aproximam em muitos aspectos, da escassez de serviços básicos à criatividade de seus moradores. 

Outro traço em comum: uma parte expressiva delas se tornou alvo de pesquisa, seja de organizações não-governamentais, de acadêmicos ou dos próprios líderes comunitários. Mas, focados nos enormes problemas que enfrentam e analisam, nem sempre os responsáveis por esses projetos conversam entre si.

Estimular a troca de ideias foi justamente o que motivou a realização do workshop da Rede de Pesquisa em Favelas, que reuniu pelo segundo ano pesquisadores do Rio, de Minas e dos Estados Unidos na sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) nos dias 15 e 16 de setembro. 

Evento discutiu o perigo de políticas públicas que homogeneízam favelas e um fantasma que voltou a rondar muitas delas: a remoção

Os números de Belo Horizonte que abrem esse texto foram apresentados pela fundadora da ONG Favela é isso aí, a antropóloga Clarice Libanio. Em atividade desde 2004, a organização fez um guia cultural que mapeou artistas de todas as favelas da cidade e ensina moradores de 50 delas a produzir vídeos, programas de rádio e jornais, mesmo sem contar com patrocínio formal.

Assim como Libanio, Mariana Cavalcanti, antropóloga da Fundação Getúlio Vargas, e Eblin Farange, que representava as Redes de Desenvolvimento da Maré, destacaram o perigo de políticas públicas que homogeneízam favelas e falaram de um fantasma que voltou a rondar muitas delas: a remoção. 

No Rio, a retirada de casas e barracos tem sido realizada em áreas de risco, mas também em prol do projeto de revitalização da cidade para os megaeventos esportivos (Copa e Olimpíadas). 

Essa questão vai ser discutida em um seminário organizado pelas Redes de Desenvolvimento da Maré na lona do Complexo. “Vamos tratar das remoções, da maquiagem urbana e dos muros colocados recentemente entre as favelas e as linhas Amarela e Vermelha”, explicou Farange.

As redes da Maré também se dedicam a missões mais conceituais, como a “desnaturalização do olhar”, tanto em quem é da favela quanto em quem é de fora. “Para muita gente da Maré, chegar ao ensino médio já é estudar demais”, pontuou. “O Complexo é do lado do Fundão, mas muitos desconhecem que aquilo é parte de uma universidade pública.”

O PAC na berlinda

Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), trouxe outros números para a segunda mesa da manhã. Uma das idealizadoras do projeto da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Social, ela lembrou que na primeira década do século 21, ao mesmo tempo em que o Brasil reduzia a pobreza, o Rio de Janeiro chegava ao fundo do poço no que se refere à perda de controle do espaço público para o tráfico e a milícia.

UPP Social
Reunião da UPP Social do Morro da Providência (RJ). O projeto é visto como divisor de águas por uns e com ceticismo por outros. (foto: André Gomes de Melo/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

 

“De 2001 a 2010 a polícia do Rio matou mais de 6 mil pessoas e houve cerca de 23 mil assassinatos, boa parte deles em favelas”, afirma ela. “Temos a média de 25 homicídios por 100 mil habitantes no país, mas para jovens negros do Rio esse número sobe para 400.”

Ramos, que não está mais envolvida diretamente com a UPP Social, aproveitou para defender o que definiu como “hipótese polêmica”. Para ela, apesar das dificuldades que o projeto tem enfrentado nos últimos meses, ele traz um modelo mais promissor para a reapropriação do espaço público, ao expulsar o tráfico ou a milícia armada, do que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal.

Ramos: “O pressuposto de que mudanças urbanísticas ajudariam a diminuir o controle do crime se mostrou equivocado desde o Favela-Bairro”

“O pressuposto de que mudanças urbanísticas ajudariam a diminuir o controle do crime já se mostrou equivocado desde o Favela-Bairro”, observa a pesquisadora, referindo-se ao projeto carioca de urbanização realizado nos anos 1990.

A hipótese de Ramos não foi endossada por seu companheiro de debate, o economista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-diretor da Caixa Econômica Federal Fernando Costa. Para ele, o PAC é muito recente para ser considerado um fracasso.  

A discordância só reforçou a importância e a necessidade do debate, que à tarde reuniu palestrantes e líderes comunitários da plateia em grupos temáticos de discussão.

Helena Aragão
Ciência Hoje On-line