Dissecando a poética dos contadores de história

Estamos num gramado, atrás da igreja, no ponto central da cidade, sentados em torno de uma fogueira, em meio a uma audiência de crianças e adultos. Com a palavra, o contador de histórias. Apesar do advento da televisão, o papel desses narradores nas regiões rurais do Brasil continua sendo o de transmitir adiante as memórias da comunidade. Uma fonoaudióloga analisou o uso da voz por esses artistas de Minas Gerais em busca de identificar as estratégias fonéticas que tanto seduzem seus ouvintes.

‘Seu Oto’, contador de histórias do povoado de Curralinho (MG), na ponte do Acaba Mundo, sobre o rio Jequitinhonha, muito citada nas narrativas locais. Professores e participantes da oficina de contos orais, no Festival de Inverno da UFMG, em 2002, ouvem atentos os causos do antigo garimpeiro (foto: Foca Lisboa). 

O estudo foi feito com base em gravações de entrevistas e das histórias contadas nos vales do Jequitinhonha e do Mucuri, registradas por pesquisadores do projeto “Quem conta um conto aumenta um ponto”, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Com o auxílio de um software que lhe permitiu fazer recortes nas gravações, analisar as pausas, a entonação e a velocidade da fala, a pesquisadora Maria Cristina Ribeiro comparou a voz dos contadores durante a narração e em situações informais de fala. “Mudando o contexto, muda-se também o registro da voz”, conta. “A partir daí, pudemos saber quais características se repetem e formam o perfil desses artistas.” Os resultados da análise foram apresentados na dissertação de mestrado da fonoaudióloga, defendida em 2006 na UFMG.

Entre as estratégias identificadas pela pesquisadora, a mais marcante é o recurso à redundância. “É bem típico nos contos rurais a repetição das palavras como forma de dar ênfase à ação”, continua a autora. Nesses chamados “ecos fônicos”, a monotonia é um diferencial em relação ao restante da história, o que acaba por ressaltar o trecho no qual é utilizado. Nesses casos, até a entonação torna-se menos contundente. Na história “O soldadin e o bitela”, contada por Joaquim Soares Ramos, do Vale do Jequitinhonha, há um bom exemplo desse recurso. No relato da briga entre o soldado e o animal, o contador descreve a cena do animal se debatendo: “Foi roncano (sic), roncano, roncano, até que acabou de morrer de todo.”

A maior variação entre os tons grave e agudo, que confere um tom melodioso à fala do narrador, é outra característica comum na performance dos contadores identificada pelo estudo. Enquanto num momento informal de comunicação é normal a utilização de no máximo 18 semitons da escala musical, um dos contadores chega a ter média de 18,4 semitons, muito acima da verificada nas situações informais.

A pesquisadora também observou que a voz dos contadores é mais aguda nos momentos de narração de histórias do que nas entrevistas. “É possível observar, dentro de uma mesma palavra, uma curva ascendente na freqüência da sílaba anterior à tônica até o fim da sílaba tônica”, diz Maria Cristina. Destacar essa sílaba pré-tônica é também uma das características que diferencia os contadores rurais dos demais já estudados: eles usam a técnica de pronunciar essas sílabas de forma mais demorada, afim de valorizá-las.

Segundo Ribeiro, as conclusões de seu estudo podem ter uma série de aplicações práticas. “Entender as estratégias vocais dos contadores de histórias pode nos ajudar a incrementar a formação dos profissionais que atuam no teatro, na TV, no rádio e até no telemarketing”, acredita Maria Cristina.

Trabalhos acadêmicos envolvendo contadores de histórias dos vales do Jequitinhonha e Mucuri são freqüentes na UFMG. “Temos um trabalho de mestrado em fase inicial, por exemplo, que abordará o papel social do artista e a forma como é reconhecido pela comunidade”, afirma Sônia Queiroz, uma das orientadoras do estudo sobre a prosódia dos contadores, e coordenadora do projeto “Quem conta um conto aumenta um ponto”. O grupo já editou diversas antologias com transcrições dos contos orais e CDs com gravações das histórias, distribuídos em escolas da região e em oficinas de contadores.

Rosa Maria Mattos
Ciência Hoje On-line
11/07/2006