E o samba conquistou as elites

 

A história do samba pode ser uma boa pista para se compreender importantes transformações sociais que marcaram a primeira metade do século 20 no Brasil. Foi nessa época que esse tipo de música, originária de manifestações religiosas e culturais da população de ascendência africana, deixou de ser objeto de perseguição e sinônimo de vadiagem para entrar no circuito comercial do país e, aos poucos, se transformar num dos principais símbolos de nossa cultura.

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Getúlio Vargas (1882-1954) em foto de 1945
(foto: CPDOC / Fundação Getúlio Vargas)

 

Mas quais foram as condições que permitiram que o samba entrasse nos salões das elites e fosse executado por todo país em rádios e toca-discos? O historiador Magno Bissoli defende em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) que a nacionalização desse tipo de música esteve em larga escala associada à industrialização do país e ao projeto político e econômico de Getúlio Vargas.

Intitulada “Caixa Preta: samba e identidade nacional na Era Vargas”, a tese, orientada pelo professor Wilson do Nascimento Barbosa, procurou avaliar o impacto dessa música na formação da identidade na sociedade industrial entre 1916 e 1945. Bissoli propõe que a transformação do samba proibido em ritmo nacional relaciona-se com a cooptação da mão de obra negra como força de trabalho para o processo de industrialização pelo qual passava o país e com a necessidade de se estabelecer um símbolo nacional aceito pela elite.

“A comercialização do samba criou condições favoráveis para que o Estado atraísse, por meio da identificação, uma mão de obra até então desprezada”, aponta o historiador. No entanto, ele ressalta que, à medida que era popularizado, o samba sofreu um ‘embranquecimento’ decorrente de sua apropriação por uma camada média da população e pela mídia, acentuadamente durante o governo nacionalista e autoritário de Getúlio Vargas.

“Vargas incorporou o samba durante o Estado Novo com dois objetivos complementares: enquanto promovia a identificação da comunidade negra com a nação brasileira, mostrava às elites e ao resto do mundo uma nacionalidade branca.” Para que isso acontecesse, Bissoli explica que o governo estimulava a difusão do samba por meio de propagandas oficiais, enquanto a indústria criava um novo produto altamente rentável.

A composição de Ary Barroso “Aquarela do Brasil”, de 1939, exemplifica bem o caráter ufanista que agradava aos setores do governo comprometidos com a construção de uma nova nacionalidade brasileira. As imagens idílicas de seus versos , cadenciados pelo samba, levaram ao mundo o retrato de um Brasil que, no entanto, não correspondia à realidade daqueles que criaram o ritmo.

“A história reservou aos negros a função de operários”, aponta Bissoli. “Enquanto a indústria fonográfica produzia dinheiro contratando músicos e intérpretes brancos, os compositores negros, verdadeiros artistas do samba, se mantinham marginalizados na mesma condição de pobreza.”

Julio Lobato
Ciência Hoje On-line
16/06/04