Na virada de 2007 para 2008, a divulgação de casos de febre amarela no Brasil deixou a população assustada, aumentando a busca pela vacina contra a doença, cujos efeitos colaterais causaram um número de mortes maior do que a média. De quem é a culpa? “Da mídia”, diriam muitos, quase automaticamente.
Dessa vez, no entanto, a resposta vem de um estudo acadêmico. Em sua dissertação de mestrado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), a jornalista Cláudia Malinverni analisou a cobertura da Folha de São Paulo à época e concluiu que o jornal exagerou ao proclamar uma epidemia que não existiu de fato.
Segundo a pesquisadora, o noticiário ignorou os boletins oficiais do Ministério da Saúde, como o de 28 de fevereiro de 2008, que dizia que todos os casos de febre amarela confirmados desde dezembro do ano anterior estavam associados ao ciclo silvestre da doença – quando não há perigo de epidemia, já que se concentram em áreas de florestas e matas.
Malinverni se debruçou sobre 118 matérias da Folha (edições veiculadas na Grande São Paulo, exceto na região do ABC) relacionadas ao tema, que circularam entre os dias 21 de dezembro de 2007 e 29 de fevereiro de 2008, no auge da suposta epidemia.
De acordo com os dados da pesquisa, o noticiário teria dado espaço desproporcional ao assunto – em termos de relevância social e perigo real –, tratado o tema de forma majoritariamente subjetiva e se apoiado fortemente em fontes contrárias às declarações de normalidade da febre amarela sustentadas pelos gestores públicos.
Além disso, a divulgação contínua do número de casos suspeitos, com destaque para os óbitos, teria ajudado a deslocar a doença “do seu sentido epidemiológico silvestre, um evento de ocorrência espacialmente localizado e de gravidade delimitada, para o urbano, caracteristicamente epidêmico e consideravelmente mais grave”.
O secretário de redação da Folha, Rogério Gentile, contesta os dados da pesquisa e afirma que “os números de mortes justificaram o destaque que o jornal deu ao assunto”. Segundo boletim oficial do governo, 19 pessoas morreram em decorrência da doença nos dois primeiros meses de 2008, seis a mais do que em todo o ano de 2007. Em 2006, foram confirmados três óbitos, um a mais do que no ano anterior.
Gentile até admite que talvez o jornal tenha exagerado no tom da cobertura, mas ressalta que os jornalistas tiveram o cuidado de não caracterizar o número do aumento de casos como sendo uma epidemia. Isso poderia ser comprovado, por exemplo, nas matérias “‘Risco de epidemia urbana é remoto’, dizem especialistas”, de 9/1/2008, e “Para médicos, não há motivo para alarde“, de 14/1/2008.
Riscos omitidos
Ainda segundo o estudo de Malinverni, para acabar com a ‘epidemia’, o jornal teria enfatizado a vacinação como única forma de proteção à doença. Na própria matéria “‘Risco de epidemia é remoto’, dizem especialistas”, um dos médicos ouvidos, Vicente Amato Neto, diz: “se os casos continuarem aumentando, o país terá de avaliar uma vacinação em massa”. “O maior problema, nesse ponto, é que a cobertura não salientou os riscos que a vacina comporta”, critica a pesquisadora.
Os riscos da vacinação contra a febre amarela são poucos. Existe um consenso entre os órgãos de saúde que apenas de 2% a 5% dos vacinados sofrem algum sintoma. Mas, como qualquer remédio, sempre há riscos de efeitos colaterais, alguns graves. No caso da vacina antiamarílica, a reação mais perigosa é a doença viscerotrópica, que pode causar choque, derrame pleural e abdominal e falência múltipla dos órgãos.
Naquele verão (2007-2008), foram distribuídas cerca de 13,6 milhões de doses de vacina antiamarílica. As reações à imunização, que são raras no país, foram oito vezes registradas em 2008, sendo que seis delas resultaram em morte.
“Na contramão de leigos que proclamavam a urgência de imunização universal, em várias ocasiões ouvimos infectologistas que a condenaram”, argumenta Rogério Gentile. Um exemplo seria uma entrevista concedida por Dráuzio Varella à Folha, na qual o famoso médico explica os riscos da vacinação. Gentile destaca ainda que o próprio governo, médicos e pesquisadores também não alertaram, de antemão, para os riscos da vacinação.
Para Cláudia Malinverni, os impactos da cobertura jornalística sobre o sistema público de saúde demandam uma discussão crítica sobre o papel da imprensa no campo da saúde, particularmente da saúde pública.
Já na avaliação do secretário de redação da Folha, o que ficou evidente no episódio é que houve sérias falhas na interlocução entre governo, academia e imprensa. “Por isso, não é honesto atribuir apenas a uma parte a responsabilidade pelos desfechos negativos”, defende.
Fato é que, enquanto não houver um melhor entendimento entre os sistemas de poder midiático, governamental e científico, quem perde é o leitor.
A febre amarela é uma doença infecciosa aguda, causada por um vírus, que ocorre na América Central, América do Sul e África. Existem dois tipos de ciclo da enfermidade, o silvestre e o urbano. Eles se diferem quanto aos vetores (os mosquitos Haemagogus e Sabethes no ciclo silvestre e Aedes Aegypti no urbano), hospedeiros (animais, na maioria dos casos, e humanos) e áreas de ocorrência (campo e cidade).
Os sintomas aparecem de três a seis dias depois que a pessoa é picada pelo mosquito infectado. As manifestações incluem febre alta, dor de cabeça, cansaço, dor muscular e calafrios. Náuseas e diarreia também podem ocorrer. Cerca de 85% das pessoas contaminadas consegue se recuperar em três ou quatro dias após o surgimento dos sintomas.
Desde a década de 1940, o Brasil não registra casos de febre amarela urbana – os três últimos ocorreram em 1942, na cidade de Sena Madureira, no Acre.
Fernanda Braune
Ciência Hoje On-line