Filogeografia chega à juventude

 

Há 20 anos era publicado o artigo que iniciou uma nova disciplina da biologia que integra conhecimentos de genética, evolução e biogeografia. Seu nome: filogeografia. Conforme proposto pelo biólogo norte-americano John Avise e seus colegas, a filogeografia é uma disciplina que se insere na biogeografia, ciência que estuda a distribuição das espécies no espaço e no tempo. Com essa perspectiva, a disciplina trata de conhecer e explicar os padrões e processos que afetam a distribuição das linhagens genéticas das espécies em um contexto geográfico a partir da reconstrução da história dessas linhagens.

Podemos entender um pouco melhor a lógica que fundamenta esses estudos traçando um paralelo com a história dos sobrenomes em algumas populações humanas. Por exemplo, em várias sociedades, os sobrenomes são passados de maneira hereditária, e algumas famílias tendem a se concentrar em determinadas regiões da Terra. Da mesma forma, características genéticas herdadas (linhagens) também apresentam padrões de distribuição que diferem ao longo do espaço geográfico e do tempo.

Esquema evolutivo hipotético dos sobrenomes da Família Schmidt, com as migrações e padrões geográficos surgidos com o tempo. Setas amarelas indicam migração da linhagem ancestral (Schmidt) e setas vermelhas indicam mudança associada a uma região geográfica (arte: Paulo B. Chaves).

Imagine a história hipotética do casal alemão Schmidt, que imigrou para o Brasil. Como ocorreu com diversos sobrenomes estrangeiros no Brasil, suponhamos que, em um dado momento, o sobrenome de um de seus membros tenha sofrido uma ‘mutação’ (causada por um erro de digitação no cartório) para Schmitt. Após algumas gerações, um dos descendentes desse novo ramo da família – que, ao nascer, teve seu nome registrado como Shmidt – foi estudar na África, onde fundou uma nova família. Finalmente, imagine que alguns indivíduos que emigraram da Alemanha para outro país (Argentina, digamos) tenham tido seu nome alterado para Schmid.

A história das migrações dessa família pode ser representada por uma figura ligando os sobrenomes aos seus locais de ocorrência, como mostra a ilustração ao lado.

Para entendermos a base da filogeografia, podemos substituir o sobrenome por uma seqüência de DNA e os erros de cartório por mutações que ocorrem durante a replicação da molécula. Assim, de uma maneira análoga como fizemos com o sobrenome, é possível – utilizando-se uma boa dose de métodos de análise estatísticos – traçar a história evolutiva de uma espécie examinando as linhagens que estão em cada população.

As pistas deixadas em forma de mutação no DNA podem ajudar na identificação de eventos pelos quais as espécies passam ao longo da sua evolução. Entre esses eventos, estão barreiras à dispersão entre as populações naturais (como rios ou montanhas), colonização de novas áreas (como ilhas), extinção de linhagens (uma população de peixes, que pode conter linhagens únicas, pode desaparecer se o lago onde vive secar), crescimento e redução populacional (ratos liberados em uma ilha onde não há competidores podem ter um crescimento populacional extremo).

Filogeografia aplicada
Um bom exemplo de aplicação da filogeografia é um estudo liderado pelo professor Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Os resultados mostraram que tanto para jaguatiricas (Leopardus pardalis) quanto para o gato-maracajá (L. wiedii), existem três grupos principais de linhagens genéticas, possivelmente separados pelo rio Amazonas e pelo estreito do Panamá.

Esse resultado pode ajudar diretamente na conservação dessas espécies, pois mostra que, se quisermos preservar toda a diversidade dessas espécies (no caso, a diversidade genética, que é parte do seu legado evolutivo), políticas conservacionistas devem existir dentro de cada uma das três grandes áreas onde as linhagens independentes ocorrem.

A filogeografia e sua contribuição para os estudos da evolução foram um dos temas de destaque do primeiro Encontro de Biologia Evolutiva, realizado entre 5 e 7 de novembro em Porto Alegre. O evento contou com a presença de renomados pesquisadores de diversas partes do mundo, com destaque para o pai da filogegrafia, o professor John Avise, da Universidade da Califórnia em Irvine. Vinte anos após a publicação do artigo seminal no Annual Review of Ecology and Systematics, Avise concedeu à CH On-line uma entrevista em que fez uma breve avaliação da história da disciplina que ele lançou em 1987.

Paulo B. Chaves e
Nelson J. R. Fagundes

Laboratório de Biologia Genômica e Molecular,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
22/11/2007

Professor John Avise, aos 59 anos, no encontro que reuniu evolucionistas no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no início do mês (foto: André Chassot).

Há vinte anos o senhor e seus colegas lançaram a disciplina chamada filogeografia. Como ela se desenvolveu desde 1987?
Prof. John Avise –  O campo cresceu exponencialmente por praticamente qualquer critério de medida que adotemos, incluindo o número de artigos científicos que tratam desse tópico, o número de cientistas envolvidos ou o número de regiões do mundo onde estudos de filogeografia estão sendo conduzidos. O campo continua crescendo, talvez a uma taxa menor, agora que atingiu certa maturidade.

Como a filogeografia tem contribuído para o nosso entendimento sobre a evolução da vida na Terra?
Este foi o tema principal da minha palestra no Brasil. Basicamente, a filogeografia adicionou uma perspectiva genealógica – histórica, filogenética – aos estudos de microevolução (estudos evolutivos no nível de populações), que esteve sempre ausente nos campos de genética de populações e ecologia. Assim, a filogeografia forneceu uma poderosa conexão conceitual e empírica entre as disciplinas de micro e macroevolução (estudos evolutivos em um nível hierárquico superior ao de populações: espécies, gêneros etc.), que estavam desconectadas.

A filogeografia tem uma ligação próxima com a biologia da conservação. De que forma as informações obtidas por filogeógrafos podem ajudar a prevenir a extinção de espécies?
Essas informações nos ajudaram a entender a história e a formação das espécies em um contexto genealógico. Atualmente, sabemos muito melhor as respostas para muitas perguntas como: Quão antigas são as espécies? Como as diferentes populações geográficas de uma espécie são relacionadas entre si? De que forma a história da Terra – como as mudanças climáticas da época do Pleistoceno – moldou a distribuição geográfica de plantas e animais? Como a ecologia e comportamento dos indivíduos influenciam tudo isso? E, finalmente, qual é o verdadeiro sentido de uma filogenia – genealogia – na escala das populações geográficas dentro de uma espécie?

Em sua palestra o senhor mencionou o termo ‘parques pleistocênicos’. O que seriam esses parques?
É basicamente a idéia de que os países poderiam instituir reservas naturais – extensas porções de terra ou mar – com a intenção explícita de preservar pontos ricos em biodiversidade que surgiram por meio de especiações e outros eventos bióticos importantes durante o Pleistoceno (período geológico anterior ao Holoceno – recente –, quando a Terra foi influenciada por sucessivos ciclos glaciais).

Os resultados de estudos de filogeografia estão influenciando os políticos nas tomadas de decisão em conservação da biodiversidade? O senhor vê, nestes 20 anos, alguma tendência na melhora do diálogo entre a biologia evolutiva e os políticos, ou este diálogo ainda está na infância?
Acredito que o diálogo ainda é muito incipiente, talvez nem tenha chegado à infância. Podemos enxergar a situação de duas maneiras: tanto como um grande problema ou – como prefiro – como uma maravilhosa oportunidade de melhorarmos no futuro. O público – incluindo os políticos – precisa de uma educação muito melhor e também precisa estar mais envolvido em esforços de conservação de toda sorte.