Fumantes: cromossomo sexual em risco

Não foi sem surpresa que a comunidade científica recebeu a instigante notícia: o fumo, além dos inumeráveis reveses clássicos que provoca à saúde, pode também afetar os cromossomos sexuais masculinos. Se comparados a não fumantes, os homens que fumam são três vezes mais propensos a danificar ou perder, em suas células sanguíneas, o famoso cromossomo Y.

Comecemos pelo básico: indivíduos da espécie humana têm 23 pares de cromossomos. Um desses pares serve para determinar, entre outras coisas, nossas características sexuais. Nas mulheres, a dupla responsável por essa função é composta por dois cromossomos do tipo X. E nos homens, diferentemente, esse par é formado por um cromossomo do tipo X e outro do tipo Y.

Se comparados a não fumantes, os homens que fumam são três vezes mais propensos a danificar ou perder, em suas células sanguíneas, o famoso cromossomo Y

E aqui vem a novidade: nas células sanguíneas de fumantes, cientistas notaram a ausência do cromossomo Y – ou, em muitos casos, que esse cromossomo sofrera processos severos de mutação. A descoberta foi anunciada em um artigo publicado na Science desta semana.

Já se sabia que o fumo estava por trás de diferentes danos genéticos e mutações cromossômicas. “Mas essa associação entre o hábito de fumar e a perda do cromossomo Y era desconhecida pela ciência”, diz à CH On-line um dos autores do trabalho, o geneticista Lars Forsberg, da Universidade de Uppsala, na Suécia. Para chegar a tal conclusão, a equipe analisou dados de mais de 6 mil homens acima de 48 anos.

E qual é, afinal, o problema para quem tem esse material genético danificado? Danos ao cromossomo Y, segundo os autores do estudo, estão muito provavelmente associados ao desenvolvimento de tumores e diversos tipos de câncer na população masculina.

Homens: o sexo frágil

“O artigo recém-publicado ajuda a elucidar uma questão que costuma gerar muita dúvida: por que o tabagismo tem consequências mais severas para os homens que para as mulheres?”, contextualiza o pneumologista Clóvis Botelho, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Explica-se. Considerando que o cigarro é particularmente problemático para o cromossomo Y e que apenas os homens têm esse cromossomo, parece razoável supor que o tabagismo seja mais prejudicial para eles do que para elas. De fato, as estatísticas endossam essa afirmação.

Cromossomos
Conjunto de cromossomos de um ser humano do sexo masculino. A imagem mostra os 23 pares, estando a dupla XY no canto inferior direito. Conhecemos apenas uma pequena parte das funções dos genes humanos. A primeira descrição completa de nosso genoma só veio à tona no ano 2000 – e ainda se faz preciso um longo trabalho de interpretação desses dados. (imagem: Wikimedia Commons)

Não estamos falando apenas de câncer de pulmão ou de outras partes diretamente vinculadas ao trato respiratório. “Na verdade, dados epidemiológicos mostram que fumantes homens têm maior risco de desenvolvimento de tumores em vários lugares do corpo: laringe, boca, traqueia, bexiga, ossos…”, elenca o pesquisador da UFMT.

E, para esse fato, os autores do estudo também ensaiam uma explicação. As células sanguíneas que acabam perdendo o cromossomo Y podem ter reduzida sua resposta imune. Resultado: tornam-se incapazes de reconhecer a formação de um eventual tumor – abrindo caminho para o desenvolvimento do câncer.

As células sanguíneas que acabam perdendo o cromossomo Y podem ter reduzida sua resposta imune. Resultado: tornam-se incapazes de reconhecer a formação de um eventual tumor

“Não paramos de nos surpreender: com o avanço das pesquisas, cada vez mais aspectos nocivos do tabagismo são revelados”, comenta o geneticista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Claiton Bau, que elogiou o trabalho recém-publicado na Science.

Apesar do entusiasmo com as novas perspectivas abertas pelo novo estudo, muitas perguntas ainda demandam esclarecimento. “Precisamos estudar populações maiores, e incluir também pesquisas com públicos mais jovens”, reconhece Forsberg. “Agora, pretendemos investigar em detalhe o que exatamente se passa nas células que perdem o cromossomo Y”, adianta o pesquisador.

Para Bau, “seria interessante estudar que parcela das alterações no cromossomo Y se deve à nicotina, por exemplo, e que parcela se deve aos demais compostos presentes no cigarro”. A droga tem centenas de substâncias tóxicas – muitas delas sabidamente mutagênicas e carcinogênicas.

Pare de fumar

Para os fumantes desejosos de se livrar do hábito, o artigo da Science sinaliza uma boa notícia. Com relação ao cromossomo Y, as células sanguíneas de ex-fumantes se mostraram praticamente iguais às de pessoas que nunca fumaram. “Nossos resultados indicam que a perda do cromossomo Y pode ser reversível”, diz Forsberg.

“De fato, isso serve como um argumento bem persuasivo para motivar os homens que querem abandonar o tabagismo”, reforça o autor do estudo.

Nova lei: fumantes acuados

Em tempo, uma interessante coincidência. Na quarta-feira (03/12), entrou em vigor no Brasil a nova Lei Antifumo. Resumo da ópera: a vida dos fumantes será mais difícil – pois acender um cigarro passa a ser um ato proibido em praticamente qualquer lugar fechado, tanto público como privado.

O cigarro matou 100 milhões de pessoas ao longo do século 20. Estima-se que, se os patamares de tabagismo permanecerem estáveis, o cigarro responda, ao longo do século 21, por nada menos que 1 bilhão de mortes

No final da década de 1980, 36% dos brasileiros fumavam. Hoje, são apenas 11%. “Esse decréscimo se deve principalmente às políticas públicas de combate ao cigarro, como as diversas campanhas publicitárias e leis em vigor no país”, avalia Botelho. “Também tem a ver com a educação: na escola, as crianças aprendem que cigarro é ruim; o médico reforça o discurso; o padre fala que não se deve fumar; a mídia bate na mesma tecla, e por aí vai.”

“A indústria do tabaco está apavorada”, conclui o pneumologista da UFMT. Agora ela migra para países em desenvolvimento – notadamente na Ásia e na África, onde a legislação tende a ser mais permissiva para questões de saúde pública.

Enquanto isso, no mundo desenvolvido, esse notório segmento industrial adota outra estratégia: aposta no comércio do cigarro eletrônico. “Ainda não temos nenhum estudo científico, com dados populacionais relevantes, que ateste a segurança desse novo tipo de cigarro”, preocupa-se Botelho. O fato é que as indústrias, agora, investem pesado na compra e desenvolvimento de patentes de diversos modelos dos chamados e-cigarettes.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, o cigarro matou 100 milhões de pessoas ao longo do século 20. Estima-se que, se os patamares de tabagismo permanecerem estáveis, o cigarro responda, ao longo do século 21, por nada menos que 1 bilhão de mortes. “O tabagismo”, diz Bau, “é a principal causa prevenível de morte no mundo todo”.

Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line