O réptil fóssil de duas cabeças

O título da coluna deste mês lembra um filme de ficção cientifica: um réptil de duas cabeças! Ainda mais fóssil. Essa descoberta surpreendente foi anunciada pelo paleontólogo Eric Buffetaut, do Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris, juntamente com pesquisadores chineses, em artigo publicado na revista Biology Letters no final do ano passado.

O exemplar foi coletado na região de Wanfuotang, província de Liaoning. Nessa região são encontradas as rochas da Formação Yixian, que foram depositadas há cerca de 125 milhões de anos, em um tempo que chamamos de Cretáceo Inferior. O esqueleto do fóssil estava praticamente completo, possuindo apenas 7 cm de comprimento – o que equivale a metade de uma caneta. Seu tamanho reduzido aliado a outras características, como as grandes órbitas, levaram aos autores a concluir que se tratava de um animal muito jovem, talvez um recém-nascido.

Comparando as feições anatômicas, os pesquisadores concluíram que o animal era um réptil do grupo chamado Choristodira, que nos depósitos de Yixian é representado principalmente pela espécie Hyphalosaurus lingyuanensis . Adultos dessa espécie de réptil marinho chegam a ultrapassar 1 metro de comprimento e vários indivíduos jovens foram encontrados nessas camadas que outrora formavam o fundo de lagos.

Dois aspectos desta descoberta surpreendem. O primeiro é o fato em si – um animal de duas cabeças nos remete a criaturas folclóricas ou mitológicas. Talvez as mais conhecidas sejam as mencionadas nos 12 trabalhos de Hércules , uma das mais fascinantes histórias da mitologia grega, com muitos monstros de várias cabeças, como a Hidra de Lerna, que tinha nove!

Animais com duas cabeças, apesar de raros, são encontrados nos dias de hoje. Essa malformação, conhecida nos meios científicos como bifurcação axial, é uma das principais deformações de cunho embrionário estudada na especialidade médica chamada de teratologia (do grego teratos = fera, monstro + logos = estudo). No caso de répteis, já foram registrados vários casos de serpentes, lagartos, crocodilos e até tartarugas. Alguns deles chegaram a viver por alguns anos em cativeiros.

Outro aspecto surpreendente da descoberta é o fato de se encontrar um organismo fóssil com esta anomalia. Se fósseis são raros, imagina um com duas cabeças…

Questionamentos
Naturalmente, quando o assunto é fósseis, sempre se pergunta: será que é verdadeiro? Não poderia ser algum artefato de preservação? Esses questionamentos têm fundamento, uma vez que Buffetaut e seus colegas não conseguiram apresentar detalhes sobre a vértebra de onde sairiam os dois pescoços – o que tiraria qualquer dúvida.

Os autores contam que a preparação dessa região de união dos pescoços não pôde ser feita, uma vez que é muito frágil e os ossos estão bem compactados – uma característica comum nos fósseis em geral, especialmente os encontrados na região de Liaoning . Mesmo assim, os autores da pesquisa sustentam que o fóssil é verdadeiro.

Segundo eles, não existe qualquer indício de superposição de dois indivíduos que tivessem sido preservados um em cima do outro. Caso isso tivesse ocorrido, teríamos que ter a duplicação de outras partes do esqueleto, como cauda e membros. Também não há qualquer sinal de adulteração, outra atenção que se precisa ter em se tratando de fósseis. Vários casos em que partes de animais distintos foram colados em uma peça única foram relatados na China – e também no Brasil, infelizmente…

Em se tratando de um indivíduo de duas cabeças fica a dúvida: por quanto tempo ele viveu? Seu tamanho diz tudo: mesmo que ele não tenha nascido morto, esse réptil de duas cabeças não sobreviveu por muito tempo – uma característica comum de malformações como esta.
Caso tenha vivido por alguns dias ou semanas, a única coisa da qual ele poderia ter se alimentado seriam larvas de insetos ou restos orgânicos que porventura estivessem flutuando na água ou no fundo do lago. Em suma, o “monstrinho de Liaoning” não deve ter vivido o suficiente para meter medo em ninguém… 

Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
06/07/2007

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A partir de meados de julho, pesquisadores chineses e brasileiros realizarão um trabalho de campo na região de Liaoning , na China, em busca de novos exemplares de fósseis, particularmente de aves e pterossauros (répteis voadores). Nessa região afloram as rochas das formações Yixian e Jiufotang (125-120 milhões de anos), que têm fornecido uma quantidade excepcional de organismos extintos. 
O paleontólogo Robert Ricklefs, da Universidade de Missouri/St. Louis (EUA) publicou na Biology Letters um estudo em que procurou determinar o envelhecimento de dinossauros do grupo dos tiranossauros. Ele concluiu que esses grandes predadores tinham um crescimento rápido e que seu desenvolvimento durante a vida deve ter sido semelhante ao dos mamíferos de grande porte modernos.  
Paleontólogos do Museu de Ciências Naturais do Rio Grande do Sul e da PUC de Minas Gerais descreveram novos achados de Hemiauchenia paradoxa , um camelídeo encontrado em rochas pleistocênicas do Rio Grande do Sul. O material consiste em dentes e membros anteriores e posteriores que revelaram importantes diferenças em relação ao Paleolama major , outro camelídeo encontrado em depósitos de regiões intertropicais do país e que alguns autores julgavam ser a mesma espécie do sul. O estudo foi publicado pela Revista Brasileira de Paleontologia .
Um novo dinossauro ornitísquio foi descoberto pela equipe de Richard Butler, do Museu de História Natural de Londres. O Eocursor parvus foi encontrado em rochas com cerca de 200 milhões de anos (Triássico Superior) da África do Sul e sugere que muitos grupos de Ornithischia – grupo que engloba importantes formas de dinossauros herbívoros – evoluíram bem mais tarde do que se supunha. O trabalho foi publicado na revista Proceedings of the Royal Society B
Uma equipe chinesa liderada por Xing Xu, do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia, em Pequim, acaba de descrever na revista Nature um grande dinossauro encontrado na Mongólia interior. Com seus 8 metros de comprimento, 3,5 m de altura e peso estimado em 1.400 kg, o Gigantoraptor erlianensis é a maior espécie do grupo chamado Oviraptorosauria, sendo pelo menos 35 vezes mais pesado do que as demais formas desse grupo. Análises histológicas indicam que seu crescimento era mais rápido do que o de outros dinossauros de tamanho semelhante.
A equipe de John Wible, do Museu Carnegie de História Natural (Pensilvânia, EUA), encontrou um novo mamífero ( Maelestes gobiensis ) em rochas formadas entre 75 e 71 milhões de anos atrás (Campaniano, Cretáceo) na Mongólia. Publicado na Nature , o estudo reacende a discussão sobre a origem de diversos grupos mamíferos modernos. O trabalho indica que os mamíferos modernos placentários surgiram no final do Cretáceo/início do Terciário, ao contrário dos dados moleculares, que indicavam uma origem bem mais antiga. O debate entre paleontólogos e biólogos moleculares continua aberto.