Lance polêmico

Centenas de milhões de telespectadores em todo o mundo. Muito rebuliço na imprensa pela demonstração que faria um brasileiro com deficiência andar com um exoesqueleto robótico. Olhares atentos de uma comunidade científica reticente. Por tudo isso, a demonstração de poucos segundos, realizada em meio a outras atrações da festa de abertura do mundial de futebol, na beira do campo e cortada pela transmissão oficial, merecia um tratamento melhor.

Mesmo assim, a iniciativa liderada pelo brasileiro Miguel Nicolelis, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, levou ciência a um dos maiores eventos esportivos do mundo e apontou possibilidades tecnológicas da medicina do futuro – apesar de não ter entregado exatamente o prometido e das críticas pela maneira pouco transparente como foi realizada.

A demonstração do projeto Andar de novo ocorreu pouco antes de a bola rolar na Arena Corinthians para a primeira partida do mundial. Em meio à festa, enquanto a transmissão se dividia entre a chegada da seleção brasileira ao estádio e as papagaiadas do espetáculo, o atleta Juliano Pinto utilizou a mente para comandar o equipamento robótico e chutar de leve a Brazuca, bola oficial do torneio. A proposta inicial era de que o exoesqueleto andasse cerca de 20 metros, o que não aconteceu – na verdade, ele não andou, nem dobrou o joelho ou deslocou seu centro de gravidade de maneira significativa, apenas moveu a perna.

Confira os ‘segundos de fama’ do exoesqueleto do projeto Andar de novo

De qualquer forma, Nicolelis comemorou o feito do Exo BRA-Santos Dumont 1, nome de batismo do exoesqueleto, e lamentou o pouco destaque recebido, em entrevista ao Jornal Nacional. “A Fifa [Federação Internacional de Futebol] nos informou que nós teríamos 29 segundos para realizar um experimento dificílimo. Nunca ninguém fez uma demonstração em 29 segundos de robótica. Isso não existe em lugar nenhum do mundo”, disse. “Nós realizamos em 16. E pelo visto a Fifa não estava preparada para filmar um experimento que vai ser histórico.”

Mudança na escalação

A demonstração foi o ponto culminante de um desafio proposto pelo próprio Nicolelis alguns anos atrás. Em paralelo ao projeto Andar de novo, ele obteve grandes avanços na área de neurociência, trabalhando com sensores implantados no cérebro de macacos. A metodologia permitiu, por exemplo, que os animais movessem um braço mecânico controlado por pensamento, inclusive remotamente, e até reconhecessem a textura de objetos por meio de braços virtuais comandados pela mente. Os progressos, porém, não eram suficientes para que a aplicação dessa metodologia atingisse o objetivo prometido: fazer um paraplégico caminhar e dar o chute de abertura da Copa do Mundo de 2014.

Guy Cheron: “O dispositivo acabou simplificado em relação ao original devido às limitações da tecnologia atual”

A solução encontrada foi optar por outra abordagem, a eletroencefalografia (EEG), uma técnica não invasiva, porém menos precisa, na qual os sinais elétricos do cérebro são captados por uma touca com eletrodos, processados pelo computador acoplado às costas do exoesqueleto e traduzidos em movimento. “O dispositivo acabou simplificado em relação ao original devido às limitações da tecnologia atual”, afirma Guy Cheron, da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica).

A eletroencefalografia tem sinal mais fraco e com muito ruído, em comparação com os captados pelos eletrodos intracraniais. Porém, o método invasivo é muito mais complexo de se aplicar em humanos, pois pode danificar o cérebro e causar infecções. “Métodos mais invasivos nunca foram testados para fazer um humano andar e ainda não estão prontos para serem usados em humanos fora do ambiente do laboratório”, avalia Jose Luis Contreras-Vidal, da Universidade de Houston (EUA).

Caixinha de surpresas

Se a mudança de planos parecia inevitável, a forma como a nova interface cérebro-máquina foi desenvolvida, no entanto, recebeu muitas críticas da comunidade científica – em especial devido à falta de transparência. Como nenhuma etapa foi publicada em revistas científicas, o projeto não pode passar pela avaliação da comunidade acadêmica.  “A possibilidade de divulgação da ciência para milhões é memorável, pena que tenha sido feita sem a responsabilidade ética compatível com o impacto do evento”, lamenta o neurocientista Roberto Lent, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Lent: “Esse tipo de divulgação pode parecer democrático, mas não é: sem a análise dos pares, a opinião pública mundial está sendo exposta a um produto sem verificação”

Ele destaca que um dos princípios éticos da divulgação científica é ‘publicar primeiro, divulgar depois’, pois a publicação em revistas especializadas funciona como um selo de qualidade do dado científico. “Esse tipo de divulgação pode parecer democrático, mas não é: sem a análise dos pares, a opinião pública mundial está sendo exposta a um produto sem verificação”, pondera. “É como se um medicamento posto à venda não passasse pela análise dos órgãos competentes para garantir a sua segurança e confiabilidade.”

O neurocientista John Donoghue, da Universidade Brown (EUA), explica que sem publicações é impossível saber o que foi apresentado. “Em ciência, esse processo serve para que os estudos tenham sua relevância avaliada à luz dos conhecimentos mais atuais”, comenta. “Mas o grupo de Nicolelis nunca publicou nada sobre exoesqueletos controlados por EEG em interfaces cérebro-máquina”, comenta. O próprio Donoghue trabalha com uma interface neural composta por sensores implantados no cérebro e conseguiu fazer pacientes com derrames e lesão espinhal moverem braços robóticos com o cérebro. “Andar, no entanto, é mais desafiador porque requer coordenação de movimentos e equilíbrio”, pondera.

Assista a um vídeo da fase de testes do exoesqueleto liberado no Facebook por Nicolelis

 

Táticas similares

Mesmo sem as especificações do projeto, é possível dizer que exoesqueletos controlados por EEG não chegam a ser uma grande novidade. Outros estudos já realizaram esse tipo de demonstração, como o Mindwalker, protótipo desenvolvido pelo grupo de Cheron, e o NeuroRex, desenvolvido por Contreras-Vidal (que também trabalha com outros dois protótipos, o Nasa X1 e o European H2).

“Algo que me parece novo é o robô em si, mas existem diversos modelos similares no campo e, sem as especificações técnicas do projeto, é impossível definir a real importância científica da demonstração”, diz Contreras-Vidal. Cheron completa: “O exoesqueleto de Nicolelis não está documentado e a natureza exata dos sinais mentais utilizados ainda permanece como uma questão aberta, por isso, é impossível compará-lo com os sistemas existentes.”

Em uma entrevista recente à revista Science, Nicolelis explicou que a mudança de tecnologia empregada na interface cérebro-máquina teria sido motivada pelos resultados ‘medíocres’ de grupos que exploraram a alternativa mais invasiva, que aparentemente funciona melhor para a movimentação de braços, não para locomoção. O neurocientista também destacou que seu grupo desenvolveu um novo algoritmo para a eletroencefalografia – e a expectativa agora é que os dados sejam publicados em revistas especializadas nos próximos meses.

Passe valorizado

O projeto Andar de novo é um consórcio formado por centenas de instituições de pesquisa do mundo, coordenado por Nicolelis. No Brasil, é liderado pelo IINN (Instituto Internacional de Neurociências de Natal) e conta com a parceria da AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), em São Paulo, onde os testes para a exibição foram realizados. O trabalho de robótica foi coordenado por uma universidade da Alemanha e o sistema utilizado foi desenvolvido na França. Para criar uma sensação mais real, ele utilizou uma tecnologia de feedback tátil, uma ‘pele artificial’ com sensores de pressão, temperatura e velocidade, que envia um estímulo para uma região na parte superior do corpo a cada toque dos pés no chão.

Teste com exoesqueleto
Durante os primeiros meses de 2014, o exoesqueleto e a interface cérebro-máquina utilizados no projeto foram testados por voluntários no laboratório da AACD, em São Paulo. (foto: divulgação)

Para concretizar o projeto, Nicolelis recebeu um financiamento de 33 milhões de reais da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o que também foi alvo de críticas de especialistas. “O projeto é muito relevante e potencialmente importante para um enorme grupo de pacientes com déficits motores, mas temos que considerar que há muitos outros projetos de altíssima relevância que encontram grandes dificuldades para um financiamento dessa magnitude”, destaca Lent.

Arbix: “A Finep se orgulha de ter investido 33 milhões de reais no projeto Andar de novo. Foi um verdadeiro gol da ciência brasileira, que mostrou para o mundo do que é capaz”

O neurocientista da UFRJ citou o recente edital do Ministério de CTI para Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, que oferece a grupos de pesquisadores de excelência (entre os melhores do país) valores de até 10 milhões de reais. “Perceba: nesse caso, estamos falando de grupos, não um pesquisador individual, o que significa que os 10 milhões de reais ainda terão que ser divididos entre os muitos pesquisadores de excelência que os compõem”, pondera.

Após a demonstração, o presidente da Finep, Glauco Arbix, ressaltou a importância do projeto brasileiro. “A Finep se orgulha de ter investido 33 milhões de reais no projeto Andar de novo, que vem sendo desenvolvido há cerca de dez anos. Foi um verdadeiro gol da ciência brasileira, que mostrou para o mundo do que é capaz”, afirmou. “A ciência do Brasil está na fronteira da geração do conhecimento.”

Impossível questionar a atualidade e importância de um projeto como o Andar de novo. Passada a corrida para a demonstração na abertura da Copa do Mundo, porém, fica a expectativa de boa parte da comunidade científica por conhecer seus detalhes técnicos e avaliar seu real grau de desenvolvimento. E nossa torcida: que o episódio pioneiro também seja um marco inicial de um projeto que realmente faça a diferença no futuro.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line