Levedura de cachaça contra a salmonela

Uma levedura envolvida no processo de produção da cachaça pode ser uma nova alternativa para combater bactérias do gênero Salmonella, que causam diarréias intensas. A descoberta foi feita em uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Testes realizados em cultura de células humanas e em camundongos comprovaram que uma linhagem da levedura Saccharomyces cerevisiae neutraliza a ação nociva da salmonela no organismo de três maneiras.

Microscopia eletrônica de varredura mostra a ligação da bactéria Salmonella typhimurium (setas menores), às células da levedura Saccharomyces cerevisae linhagem UFMG 905 (setas maiores), isolada da fermentação da cachaça. Ao fundo, as células do epitélio intestinal humano. A afinidade entre a levedura e a bactéria evita que esta se ligue ao epitélio intestinal.

“Observamos que a levedura protege as células humanas contra a ação nociva da bactéria e secreta substâncias antiinflamatórias que reduzem os danos causados por ela”, explica o biólogo Flaviano Martins. “Além disso, ela possui a capacidade de atrair a Salmonella, fazendo com que a bactéria se ligue à superfície da levedura, e não ao epitélio intestinal”.

Nos experimentos com os animais, o grupo de Martins mostrou que a linhagem em questão da levedura provocou um aumento na produção de anticorpos e na capacidade de eliminação da bactéria pelo sistema imunológico, ajudando a combater infecções causadas por ela. “Constatamos ainda que essa S. cerevisiae, após atravessar ilesa todo o trato digestivo, é capaz de impedir que a Salmonella se ligue às células intestinais”.

O biólogo lembra que algumas linhagens de Saccharomyces cerevisiae podem ser consideradas um probiótico graças a sua ação benéfica no organismo. “De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), um probiótico é um microrganismo vivo que, ingerido em quantidades suficientes, oferece benefícios à saúde do hospedeiro”, esclarece. 

Martins conta que há vários exemplos de probióticos em produtos alimentícios, como iogurtes e leites fermentados, e em medicamentos, como a levedura Saccharomyces boulardii, utilizada na prevenção e no tratamento de diarréias causadas por bactérias como a Escherichia coli enterotoxigênica, conhecida por causar a chamada diarréia dos viajantes.

Experimentos comprovaram que a S. boulardii é, também, muito eficaz no combate à diarréia causada pela bactéria Clostridium difficile, responsável pela colite pseudomembranosa. Porém, essa levedura, além de ser a única utilizada para esse fim, já foi patenteada por uma indústria farmacêutica francesa.

A levedura adequada
O trabalho de Martins foi iniciado em 2002, sob a coordenação de Jacques Nicoli, professor da UFMG, e tinha como objetivo buscar outras leveduras da mesma família da Saccharomyces boulardii, capazes de serem usadas como probióticos no combate a bactérias envolvidas em infecções intestinais. Para tal, ele recorreu ao Laboratório de Ecologia e Biotecnologia de Leveduras da UFMG, que mantém um banco com mais de cinco mil espécimes de leveduras catalogadas.

Dentre essas, foram escolhidas leveduras presentes em ambientes como a mata atlântica, em alimentos (frutas e queijos) e em processos industriais, a exemplo da produção de cachaça. “A partir daí, iniciamos testes em camundongos para avaliar a capacidade dos microrganismos de resistir às adversidades do trato digestivo, como a acidez do estômago, o elevador teor tóxico da bile e a competição com outros microrganismos presentes no ambiente intestinal”, conta o biólogo.

Os experimentos mostraram que a levedura em questão é capaz de sobreviver no tubo digestivo dos animais, sem causar prejuízo para sua saúde. “Após a realização de outros testes, chegou-se a uma linhagem da levedura da cachaça, a S. cerevisiae linhagem UFMG 905”, destaca Martins. Ele salientou ainda que, entre as inúmeras linhagens da espécie S. cerevisiae testadas pela equipe, pouquíssimas apresentam este potencial probiótico.

Nessa fase da pesquisa, o biólogo também percebeu que a levedura em questão atuou sobre a infecção causada pela Salmonella, especificamente pela S. typhimurium, e contra outros patógenos intestinais, como o Clostridium difficile. Contudo, esses estudos ainda não foram aprofundados.

“Optamos por aprofundar as pesquisas sobre a Salmonella por conta dos nossos conhecimentos bastante avançados a respeito do seu ciclo de vida e de sua atuação no organismo humano, entre outros fatores”, esclarece. “Esses dados são de trabalhos anteriores realizados na própria universidade”.

A compreensão de como se dão esses efeitos em organismos vivos foi apresentada na tese de doutorado de Martins, para o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, da Faculdade de Medicina da UFMG. “Nossos próximos passos serão aprofundar os conhecimentos a respeito dos efeitos da levedura e iniciar os testes em humanos, para, futuramente, podermos elaborar um medicamento eficaz”, estima o pesquisador.

Andressa Spata
Ciência Hoje On-line
17/04/2008