Lugar de cientista é na avenida

Nem Mangueira, nem Imperatriz, nem Viradouro. Quem ficou em segundo lugar no desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro em 2004 foi a Unidos da Tijuca, com seu enredo sobre ciência. As alegorias inspiradas por temas como a estrutura em dupla hélice do DNA, a energia elétrica ou as viagens no tempo empolgaram o público e cativaram os jurados, que colocaram a escola à frente de tradicionais potências do carnaval carioca, atrás apenas da campeã Beija-Flor.

O carro alegórico Máquina do tempo abriu o desfile da Unidos da Tijuca
(fotos: Casa da Ciência)

O desfile da Unidos da Tijuca pretendia contar a história das descobertas científicas e tecnológicas pela ótica da criatividade e da fantasia. O enredo O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível foi traduzido em carros e fantasias pelo carnavalesco Paulo Barros, com o apoio e o rigoroso trabalho de pesquisa da equipe da Casa da Ciência — Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

O carnavalesco Paulo Barros levou à Sapucaí Frankensteins, múmias e o físico alemão Albert Einstein, encarnado pelo ator Carlos Palma

No início do desfile, na noite de domingo para segunda, a comissão de frente deixou claro a que viera a escola: homens-robôs com movimentos que transitavam entre o mecânico e o orgânico abriam alas para um cortejo em que o espectador pôde ver o ator Carlos Palma caracterizado como Albert Einstein, passistas vestidos de ovelha Dolly (o primeiro mamífero clonado), alquimistas e até múmias. Um mestre-sala estava caracterizado como detetive: era Sherlock Holmes decifrando a estrutura do DNA (a porta-bandeira).

As 28 alas da escola e seus 7 carros alegóricos contaram a história do surgimento da química, do domínio da energia ou da invenção do avião. Temas polêmicos da ciência também tiveram espaço, na ala dos transgênicos ou no carro que representava o mito de Frankenstein. O que mais impressionou o público, no entanto, foi o deslumbrante carro alegórico A criação da vida, que trazia uma pirâmide humana de 123 integrantes inteiramente pintados de azul metálico cuja coreografia evocava a estrutura em dupla hélice da molécula de DNA.

 

O carro alegórico A criação da vida foi a sensação do desfile

Um desfile assim só poderia tirar os cientistas das bancadas e levá-los à Marquês de Sapucaí. Teve até prêmio Nobel caindo no samba: o polonês naturalizado americano Roald Hoffman, laureado em 1981 na categoria Química, desfilou e não poupou elogios à iniciativa. O físico brasileiro Marcelo Gleiser também esteve entre os cientistas e divulgadores que se juntaram aos cerca de 4 mil integrantes da escola e entoaram o samba-enredo do início ao fim do desfile.

A Unidos da Tijuca conseguiu levar para a avenida a física relativística, a genética e a engenharia aeroespacial. Alguns contestarão a contribuição direta do desfile para a melhoria da cultura científica do brasileiro. No entanto, não se pode negar a importância desse desfile ao trazer a ciência para a boca do povo e sobretudo ao destacar a importância da dimensão do sonho e da criatividade no fazer científico. Se a moda pegar, quem sabe veremos nos próximos anos desfiles sobre a vida e morte das estrelas ou sobre Darwin e a evolução das espécies…

 

Leia abaixo a letra do samba-enredo de 2004 da Unidos da Tijuca, composto por Jurandir, Wanderlei, Sereno e Enilson. Clique aqui para ouvir o samba interpretado por Wantuir (arquivo de formato .wma disponível no site da Unidos da Tijuca).

Nessa máquina do tempo, eu vou
Vou viajar… (com a Tijuca te levar)
À era do Renascimento
De sonhos e criação
Desejos, transformação
Acreditar, desafiar
Superar os limites do homem
Brincar de Deus, criar a vida
Querer voar e flutuar

É tempo de sonhar…
É tempo de alquimia
Querer chegar à perfeição
Com tecnologia

Na arte da ciência
A busca continua
Na luta incessante pra vencer o mal
E no vaivém dessa história
O velho sonho de ser imortal
Profecia, loucura, magia
A vontade de explorar
A lua, a terra e o mar
Pro futuro viajar, eu vou
Mistérios que ainda quero desvendar, levar
O destino é quem dirá
O amanhã, como será

Sonhei amor e vou lutar
Para o meu sonho ser real
Com a Tijuca, campeã do Carnaval   

Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
26/02/04