Mentes – e proteínas – que brilham

Algumas das maiores revoluções da ciência podem ser fruto de felizes coincidências, passar décadas esquecidas e, de repente, mudar o mundo. Um bom exemplo é a Proteína Verde Fluorescente (GFP, na sigla em inglês), cujo estudo rendeu o prêmio Nobel de Química de 2008 ao norte-americano Martin Chalfie e a mais dois pesquisadores. Em palestra no Rio de Janeiro, por conta da Nobel Prize Inspiration Initiative, que convida laureados a apresentar sua experiência em todo o mundo, Chalfie falou sobre a trajetória dos estudos com a proteína, hoje amplamente utilizada em diversas áreas, e sobre o processo científico, a importância da pesquisa básica e o papel do cientista.

Chalfie: “Na década de 1960, pensava que os cientistas eram gênios com habilidade inata de fazer ciência, que sempre tinham sucesso em seus experimentos e que trabalham sozinhos”

Professor da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, Chalfie relembrou o estereótipo de cientista que tinha em sua adolescência. “Na década de 1960, pensava que os cientistas eram gênios com habilidade inata de fazer ciência, que sempre tinham sucesso em seus experimentos e que trabalham sozinhos – no máximo, com um assistente, que, estranhamente, sempre se chamava Igor”, recordou ele, divertido. “Todos, é claro, também eram brancos e homens, com exceção de Marie Curie. Essas ideias, como minha trajetória e a história da GFP mostraram, não poderiam estar mais erradas.”

Chalfie falou no fim de setembro a uma plateia de pesquisadores e estudantes na Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Ele lembrou que seu envolvimento inicial com a proteína GFP começou por acaso, também em um seminário, onde conheceu a história e a pesquisa do japonês Osamu Shimomura – mais tarde laureado junto com ele próprio.

“A vida dele é impressionante: aos 15 anos, trabalhava em uma fábrica nas montanhas perto de Nagasaki, acabou escapando da explosão da bomba atômica e foi cursar a faculdade de farmácia, única opção na cidade destruída”, contou. Já nos Estados Unidos, o japonês dedicou-se a estudar a bioluminescência da água-viva Aequrea victoria.  “Depois de alguns resultados frustrantes, ele conseguiu isolar duas proteínas, entre elas a GFP, que emitia fluorescência esverdeada quando iluminada por luz ultravioleta”, destacou.

Processo biológico na íntegra

Quase 30 anos depois, na palestra que assistiu na Universidade de Columbia, Chalfie enxergou na GFP a ferramenta de que necessitava como sinalizador biológico para seus estudos de diferenciação celular nos pequenos e transparentes vermes Caenorhabditis elegans. As técnicas até então existentes para esse fim eram muito trabalhosas e tinham um problema: exigiam que o animal fosse sacrificado e, por isso, serviam apenas para mostrar um instante congelado do processo estudado, nunca sua totalidade.

Chalfie enxergou na GFP a ferramenta de que necessitava como sinalizador biológico para seus estudos de diferenciação celular

Com o isolamento do gene responsável pela proteína, feito em 1992 por Douglas Prasher, Chalfie conseguiu expressá-lo em C. elegans e na bactéria Escherichia coli.

Foi só o começo: por ser fácil de observar com luz ultravioleta e por não modificar a célula, a GFP se tornou um importante marcador biológico, passou a ser associada a outras proteínas para rastrear onde elas se concentram na célula e onde são expressos determinados genes a cada momento – passo fundamental para a compreensão de toda sorte de processos, como a infecção pelo HIV, o crescimento de tumores e o desenvolvimento do mal de Alzheimer. “Ela permitiu o estudo da biologia viva e levantou muitas questões inéditas para a ciência”, afirmou. “Por isso, considero a GFP uma das mais belas moléculas do universo.”

O norte-americano Roger Tsein, também laureado em 2008, aprofundou o entendimento do mecanismo de ação da GFP e produziu diversos mutantes da proteína, das mais variadas cores – que batizou com bregas nomes de frutas, como vermelho morango, amarelo banana e roxo ameixa. O feito permitiu uma visão mais profunda de sistemas complexos, como o sistema nervoso de um animal, ao colorir cada neurônio a partir da expressão diferenciada dos marcadores, e deu origem, por exemplo, às belas imagens conhecidas como brainbow – junção das palavras em inglês brain (cérebro) e rainbow (arco-íris).

Brainbow
Nas imagens conhecidas como ‘brainbow’, o uso de diferentes marcadores permite o mapeamento da interconexão entre diferentes regiões do cérebro, com a colorização de cada célula pela expressão individual de diferentes proteínas coloridas. (foto: Livet et al, Nature 2007/ Universidade Harvard)

Usos e inspirações

O uso da GFP se disseminou de tal forma que Chalfie diz não ter ideia de quantos grupos no mundo trabalham com a proteína. Ela é usada em pesquisa básica e aplicada, biotecnologia e até em áreas novas e promissoras, como a optogenética. Há, também, apropriações mais inusitadas, como o coelho fluorescente criado pelo artista brasileiro Eduardo Kac com a GFP. “Também existem estudos para usá-la na produção de seda transgênica fluorescente e até em técnicas para localizar minas terrestres”, destacou Chalfie.

Para o norte-americano, a trajetória da pesquisa da proteína ensina muitas lições sobre a ciência. “Ela mostra que o sucesso pode vir por muitas rotas, que muitas descobertas são acidentais e que a ciência é feita de conhecimento cumulativo, embora o Nobel premie apenas três dentre os muitos cientistas que contribuem para um trabalho”, avaliou. “Também fica evidente a importância de estudar todo tipo de vida, ainda mais em um país tão rico como o Brasil, pois não sabemos os segredos que podem ser revelados.”

Coelho verde fluorescente
A GFP rapidamente ganhou relevância no campo científico, tanto para pesquisas básicas quanto aplicadas, e até fora dele. Em 2000, o artista brasileiro Eduardo Kac criou um coelho verde fluorescente com a proteína. (foto: Chrystelle Fontaine)

O químico defendeu, ainda, a importância da pesquisa básica e convocou seus pares a interagir mais diretamente com a sociedade e com o poder público. “A pesquisa básica é a fonte da novidade científica, das ideias que mudam paradigmas, e precisa ser valorizada”, afirmou. “Precisamos mostrar ao público por que a ciência é apaixonante e mostrar aos integrantes do poder político qual a importância do trabalho que fazemos; mas isso exige um esforço maior na tarefa de comunicar nossas pesquisas”, concluiu.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line