O cerrado e a cana: convivência possível?

A demanda crescente por biocombustíveis como alternativa aos combustíveis fósseis, responsáveis por grande parte das emissões de gases do efeito estufa, pressupõe a expansão do cultivo de cana-de-açúcar para produção de etanol. (Foto: José Reynaldo da Fonseca)

O cerrado deve ser o bioma mais impactado pela esperada expansão do cultivo da cana-de-açúcar para produção de etanol. Da extensão total de aproximadamente 2 milhões de quilômetros quadrados ocupada por essa formação vegetal, 19,7% são considerados áreas de extrema importância biológica. E mais da metade (70%) dessas regiões corresponde exatamente aos locais onde a cana encontra condições ideais de cultivo. Os dados são de um estudo feito por mais de 200 pesquisadores de diferentes universidades brasileiras, por encomenda do Ministério do Meio Ambiente (MMA), e foram divulgados no seminário ‘A expansão da agroenergia e seu impacto sobre os ecossistemas brasileiros’, realizado nos dias 26 e 27 de março no Rio de Janeiro.

A pesquisa, apresentada pelo biólogo Ricardo Machado, diretor do Programa do Cerrado da organização não-governamental Conservação Internacional (CI) – procurada pelo MMA para dar apoio técnico e treinamento aos participantes do estudo –, identificou áreas prioritárias para conservação e áreas de extrema importância biológica na floresta amazônica, no pantanal e no cerrado. O critério usado foi a ocorrência de espécies ameaçadas, de endemismo (espécies que só ocorrem naquele local), de remanescentes de vegetação nativa e de componentes hidrológicos importantes, como nascentes. “Áreas com essas características que ainda não são protegidas por unidades de conservação deveriam receber atenção especial”, explica Machado.

O mapa mostra as áreas mais importantes para a conservação da biodiversidade do cerrado e seus graus de prioridade: extremamente alta (vinho), muito alta (vermelho), alta (laranja) e insuficientemente conhecida (cinza). (Fonte: MMA)

A inserção desses critérios em um programa computacional específico gerou mapas que revelam as áreas prioritárias para conservação. Das 294 regiões identificadas no cerrado, 166 são consideradas de extrema importância biológica. Outro mapa, que mostra as melhores áreas para o cultivo da cana, também foi produzido. “Nesse caso, utilizamos como critério os níveis de precipitação – que precisavam ser maiores do que 1200 milímetros por ano –, a existência de estação seca demarcada, temperaturas mínimas maiores que 18 °C e máximas menores que 45 °C”, enumera o biólogo. Todas essas condições favorecem a produtividade da cana. Segundo Machado, o mapa do estudo do MMA ficou bem parecido com o apresentado por Luiz Cortez, engenheiro agrícola da Universidade Estadual de Campinas, que divulgou estudo no qual foram identificadas as áreas prioritárias para o cultivo da cana levando em conta, além desses fatores, aspectos como qualidade dos solos e declividade do terreno.

O cruzamento do mapa de áreas prioritárias para conservação com o de áreas ideais para cultivo da cana evidenciou o risco que a expansão do agronegócio representa para o cerrado, caso medidas reguladoras não sejam tomadas. As regiões mais afetadas seriam: o Triângulo Mineiro, todo o estado de Goiás, o entorno do Pantanal, no Mato Grosso do Sul, as cabeceiras dos rios Xingu e Araguaia, na porção oeste do Mato Grosso, o sul do Piauí e do Maranhão e o norte de Tocantins.

Efeitos indiretos do plantio da cana  

A comparação das áreas com potencial para produção de cana-de-açúcar (em rosa) com as áreas prioritárias de conservação com importância extremamente alta (em verde) evidencia o risco que a expansão do agronegócio representa para o cerrado. (Fonte: Conservação Internacional)

O aumento da produção de cana de forma impensada provocaria também efeitos indiretos sobre a biodiversidade: empurraria as plantações de soja e a pecuária para áreas florestadas (inclusive na Amazônia) e provocaria o surgimento de cidades desordenadas.

Para Machado, algumas medidas poderiam impedir os prejuízos da expansão da cana. Entre elas, estão: a realização – e o cumprimento – do zoneamento econômico-ecológico (instrumento que determina os locais permitidos para cada tipo de empreendimento, desde a ocupação urbana e a instalação de indústrias até o estabelecimento de áreas de preservação), a criação de selos que garantam que a cana e seus derivados, como o etanol, foram produzidos seguindo critérios de responsabilidade social e ambiental e a valorização das terras florestadas. Ele ressalta: “A preservação não pode ficar com o refugo das áreas usadas para a produção”. E acrescenta que é preciso o comprometimento de governos, da sociedade civil e do setor privado para garantir a sobrevivência do cerrado e das florestas.

O biólogo acredita que a principal atitude a ser tomada no momento é reunir os envolvidos para tentar encontrar soluções que satisfaçam a todos. Segundo ele, há abertura suficiente no setor privado para ouvir as demandas conservacionistas. “Hoje, quem quiser entrar ou continuar no mercado, deverá adotar práticas social e ambientalmente responsáveis. No mercado externo, por exemplo, essa condição está se tornando imprescindível”, finaliza.

Mariana Ferraz
Especial para Ciência Hoje On-line
29/03/2007