O fim do lugar-comum

Os estereótipos condizem com as características das culturas que representam? Seriam os alemães realmente frios e sérios, assim como os brasileiros são carismáticos e receptivos? Um estudo internacional escutou quase quatro mil pessoas de diferentes culturas para avaliar se o caráter dos participantes corresponde aos estereótipos de nacionalidade. A conclusão é que eles têm pouca ou nenhuma ligação com a personalidade dos entrevistados.

A aplicação do questionário

Dentro de cada dimensão da personalidade humana, o questionário NEO-PI-R avaliou seis facetas da personalidade, tais como ansiedade, hostilidade e depressão, no caso do quesito neuroticismo e, dentro do tópico abertura à experiência, características como valores, sentimentos e idéias.

Todos os tópicos apresentavam proposições tais como: “Eu realmente gosto de todas as pessoas que conheço” e pediam para que o entrevistado classificasse-as em uma escala de cinco pontos que variava entre 0 (discordo fortemente) e 4 (concordo fortemente).

De modo geral, os entrevistados foram separados por países, mas houve exceções importantes. Ingleses foram separados dos norte irlandeses, por questões históricas, e suíços falantes de francês dos falantes de alemão, por questões lingüísticas.

No Brasil, a pesquisa foi realizada em Belo Horizonte, São Paulo e Santa Catarina, avaliando 611 pessoas para o questionário NEO-PI-R e 149 para o Inventário do Caráter Nacional.

Na pesquisa, que durou três anos, foi utilizado um questionário padrão sobre características pessoais, o NEO-PI-R, desenvolvido pelos psicólogos Robert McCrae e Paul Costa, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, em inglês) – coordenadores do estudo publicado em 7 de outubro na Science . O inventário é composto por 240 perguntas relacionadas a cinco dimensões básicas da personalidade humana: abertura à experiência, extroversão, cordialidade, neuroticismo e responsabilidade. Os entrevistados tiveram que responder às questões tendo como base a avaliação deles sobre si mesmos e sobre alguém bem conhecido que fosse nascido e criado em sua cultura.

Com o intuito de verificar se o perfil de personalidade da população de cada país coincidia com a percepção social que os indivíduos tinham em relação ao “típico” cidadão do seu país, os psicólogos formularam um outro método de avaliação, o Inventário do Caráter Nacional (NCS, em inglês). Neste, os entrevistados, todos universitários, descreveram o que seria, na visão deles, o típico membro de sua cultura e um típico cidadão norte-americano, para comparação.

Após a análise das entrevistas, os autores da pesquisa – 65 pesquisadores de 43 países – concluíram que as respostas ao primeiro questionário se correlacionavam muito bem, mas diferiam totalmente do NCS. Essa constatação confirmou que a percepção do indivíduo comum da cultura em questão não passa de um estereótipo.

A psicóloga Carmen Flores-Mendoza, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que coordenou a pesquisa no Brasil, destaca que os brasileiros têm percepções sobre sua cultura que diferem bastante da forma como outros povos sul-americanos analisados – como Argentina e Chile – se enxergam. O NCS mostrou, por exemplo, que o brasileiro se considera muito mais extrovertido, responsável e aberto a experiências do que nossos vizinhos latinos. Porém, a psicóloga destaca que, assim como no resto do mundo, a percepção que o brasileiro tem do indivíduo típico de sua cultura diferem bastante da análise que faz de si mesmo e de seus amigos. “Não há evidências de que o caráter nacional de uma determinada cultura reflita seu perfil médio de personalidade e isso se confirma no Brasil”.

Para Robert McCrae, os estereótipos podem surgir por motivos como a história do povo, seus valores éticos, seu sistema político ou o contraste com outras culturas com as quais podem estar competindo. “Seja qual for a fonte dos estereótipos, definitivamente eles não são baseados nas características dos membros de sua cultura”, disse ele em entrevista à CH On-line .

Flores-Mendoza suspeita que os estereótipos são criados para satisfazer as necessidades de grupos sociais em obter uma identificação. Dessa forma, uma sociedade não se sentiria um aglomerado de indivíduos, mas sim um grupo coeso. “Contudo, as implicações sociais e psicológicas de uma provável falta de identidade nos grupos humanos são questões de difícil investigação, uma vez que não se conhece qualquer comunidade que não tenha uma própria representação social”, pondera. 

No momento, a aplicação do NEO-PI-R está sendo ampliada no Brasil. Em colaboração com pesquisadores de diversos estados, Flores-Mendoza está analisando as diferenças inter-regionais do Brasil. Ao mesmo tempo está sendo realizada uma investigação sobre desenvolvimento de personalidades em crianças e adolescentes de Belo Horizonte.

Júlio Molica
Ciência Hoje On-line
14/10/05