O samba e a indústria cultural

“O samba é um símbolo da identidade brasileira. Mas só atingiu esse status ao se inserir na indústria cultural e ser aceito pelas chamadas classes dominantes. Porém, ele não é apenas mercadoria, pois foi construído por uma cultura popular que o legitima”. Pode soar como heresia aos puristas, mas trata-se de uma das conclusões do doutorado de José Adriano Fenerick, defendido na Universidade de São Paulo. O estudo analisa como as inovações tecnológicas e a difusão nos meios de comunicação e nos vários setores da sociedade afetaram o samba entre 1920 e 1945.

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O compositor carioca Noel Rosa (1910-1937)

O samba surgiu no Rio de Janeiro no fim do século 19 (ou até antes) na região da Cidade Nova, onde se concentravam negros libertos e vindos da Bahia. A princípio, o samba era praticado apenas como festa, como as que ocorriam no casarão da lendária mãe-de-santo baiana Tia Ciata , onde os negros ‘brincavam’ o samba, tocavam chorinho e promoviam rodas de candomblé.

As rodas de samba da época eram diferentes das de hoje, quando todos cantam a mesma música do início ao fim. O samba da época era o de partido-alto, em que havia a repetição de uma única estrofe fixa, cantada por todos, entremeada de versos improvisados — assim, só os mais sagazes sambistas cantavam sua realidade de malandragem, violência e sexo. “A indústria cultural afetou as relações do samba com o sambista e a sociedade”, diz Fenerick. Um exemplo é o famoso samba “Pelo telefone”, de Donga: após ser gravado em 1917, ganhou versão fixa estruturada em estrofes ‘congeladas’ pelo disco.

Nos anos 1920, os sambas começaram a ser gravados acompanhados pelas orquestras dos cassinos do Rio, o que alterou ainda mais sua estrutura rítmica e melódica. O samba se tornava mercadoria, com a compra e venda de discos e sua divulgação pelo rádio. Em oposição a esse samba que se ‘elitizava’ e se coisificava, surgiram as escolas de samba criadas nos morros e que circulavam pelas ruas do Rio com seus instrumentos feitos de sucata.

“O samba feito a partir daí tinha elementos dos dois mundos, do morro e da cidade.” O ritmo deixava de ser apenas um fenômeno local e ganhava o Brasil. Durante o governo Vargas, cresce sua divulgação pelo rádio e sua temática muda. Era preciso ‘educar’ o samba (torná-lo civilizado e branco). Não por acaso, data do fim dos anos 1930 a invenção do samba exaltação, que elevava o Brasil ao patamar de ‘paraíso terrestre’ (a “Aquarela” de Ary Barroso é o maior exemplo).

Em seu estudo, Fenerick pesquisou, entre outros, as biografias lançadas pela Fundação Nacional de Arte (Funarte) sobre sambistas como Cartola, Candeia ou Ismael Silva. O pesquisador também esmiuçou publicações do período especializadas em música como a Revista Phono-arte , que trazia as novidades em equipamentos de som, e jornais como A Modinha Brasileira e A Voz do Violão . E, claro, ouviu sambas da época, no que foi muito ajudado pelo acervo do Museu da Imagem e do Som, no Rio.

“O samba só se tornou símbolo do Brasil devido aos interesses relacionados das camadas populares, da classe média, do Estado e dos meios de comunicação”, avalia Fenerick. “Ele não é nem do morro, nem da cidade — como diz o samba de Noel Rosa. É brasileiro.”

Tia Ciata

Hilária Batista de Almeida (1854-1924), a Tia Ciata, trouxe consigo da Bahia tradições e ritos da cultura negra. Diversos depoimentos de Donga, Pixinguinha e João da Baiana apontam ela como fundamental na difusão do samba no Rio de Janeiro. Além de cozinheira de mão cheia e exímia partideira, sabia dançar o “miudinho”, uma forma de sambar de pés juntos que poucos dominavam.

Nas festas realizadas em seu casarão na rua Visconde Itaúna tocava-se choro na sala da frente e o samba e o candomblé eram praticados no quintal e em outros aposentos. Isso funcionava como um disfarce: na época, o samba era considerado coisa de marginais e de vagabundos, enquanto que o choro era tolerado pela polícia. Dessa maneira, o samba podia rolar solto sem que a polícia batesse à porta.

José Adriano Fenerick explica que o lugar do samba era exatamente entre o chorinho e o candomblé, “o que é simbólico, pois o samba filtrou elementos das duas culturas: o uso do cavaquinho e do violão do choro, e a utilização dos tambores do candomblé”.


Denis Weisz Kuck
Ciência Hoje on-line
07/04/03