Olho e câmeras ‘no lance’

Nesta Copa das Confederações, as atenções estão divididas: enquanto boa parte do mundo observa manifestantes e policiais nas ruas, ávidos torcedores e jornalistas acompanham as jogadas e confusões dos astros do futebol internacional. No entanto, alguns olhos presentes nos estádios estarão mais ‘focados’: as 14 câmeras que integram o novo sistema adotado pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) para determinar a posição da bola em lances duvidosos de gol.

A Fifa passou a cogitar o uso de um sistema de controle para a linha do gol após a polêmica partida entre Inglaterra e Alemanha pelas oitavas-de-final da Copa do Mundo de 2010

Ainda não testada em uma jogada real, a tecnologia terá nova oportunidade hoje, quando Espanha e Itália entrarem em campo para disputar uma das semifinais do torneio. Apesar de muito celebrada pela Fifa, fora das quatro linhas a inovação tem recebido críticas por sua aplicação muito específica, seu custo elevado e pelo fato de suas limitações não terem sido divulgadas.

Historicamente avessa à introdução de novas tecnologias no esporte, a Fifa passou a cogitar o uso de um sistema de controle para a linha do gol após a polêmica partida entre Inglaterra e Alemanha pelas oitavas-de-final da Copa do Mundo de 2010. Na ocasião, quando o time alemão ganhava por 2×1, o inglês Frank Lampard arriscou um chute de longe, a bola bateu no travessão, quicou dentro do gol e saiu. O juiz não marcou e a Inglaterra acabou goleada. Curiosamente, a história lembra outra partida entre os dois países, na decisão da Copa de 1966, daquela vez a favor dos ingleses.

Confira os lances polêmicos e bem semelhantes das partidas entre Inglaterra e Alemanha nas Copas de 1966 e de 2010

Para evitar que novos episódios polêmicos entrem para a história dos mundiais, a Fifa testa no Brasil o GoalControl-4D, instalado pela entidade em todos os estádios que participam da Copa das Confederações. O sistema, que custa cerca de 500 mil reais, utiliza 14 câmeras de alta velocidade – sete focadas em cada meta – e um software que usa as informações visuais das câmeras para fazer uma representação em três dimensões do cenário, registrando a posição da bola. Quando ela ultrapassa a linha do gol, o juiz recebe, em menos de um segundo, um sinal em um relógio especial que utiliza.

A tecnologia – uma das quatro licenciadas pela Fifa (duas baseadas no uso de câmeras e duas na análise de campos magnéticos) – já foi testada na final do Campeonato Mundial de Clubes de 2012, mas nenhum lance agudo a colocou à prova. A expectativa, no entanto, é grande – tanto que o próprio presidente da Fifa, Joseph Blatter, está na torcida por lances polêmicos. Na próxima temporada, o sistema deverá ser adotado também no campeonato inglês.

Erros e incertezas 

Apesar do entusiasmo da Fifa para o emprego da tecnologia, o jornalista científico Nic Fleming sugere, em coluna publicada na revista Nature, que ela poderia induzir o público a uma ‘ilusão em massa’. Fleming argumenta que o sistema cria representações digitais a partir de múltiplas imagens e nada indica ao espectador a incerteza e o erro potencial dessa estimativa. 

Collins: Em poucas situações outra tecnologia funcionaria melhor que os replays. Todos os casos polêmicos no passado foram revelados por eles

Ele cita um artigo do sociólogo Harry Collins, da Universidade de Cardiff (Reino Unido), que fala sobre a falsa transparência gerada pela tecnologia no tênis e defende a introdução de marcações visuais que indiquem a margem de erro da posição da bola determinada pelo sistema. 

Em entrevista à CH On-line, Collins ressalta a importância de mostrar ao público as limitações da técnica, o que não acredita que esteja acontecendo. “Há situações que podem ser problemáticas para o sistema, por exemplo, no caso de a bola estar quicando em meio a um grupo de jogadores”, afirma. O inglês, que também estudou o uso da tecnologia no críquete, defendeu a adoção de uma metodologia mais simples no futebol: a análise dos replays dos lances. “Em poucas situações outra tecnologia funcionaria melhor. Todos os casos polêmicos no passado foram revelados pelo replay.”

Confira um vídeo da Fifa, em inglês, que traz mais detalhes sobre a tecnologia

O engenheiro eletrônico Rolf Stämpfli, dos Laboratórios Federais Suíços para Ciência e Tecnologia de Materiais (Empa, na sigla em alemão), órgão responsável por avaliar as tecnologias licenciadas pela Fifa, rebate as críticas sobre as medições: “Onde começa a incerteza? Quão precisa é a linha do gol? Pelas regras, a bola deve ultrapassar totalmente a linha ou o seu plano vertical, mas as traves são realmente verticais? Se não são, devemos compensar isso?” E completa: “Para utilizar replays de vídeo seria preciso interromper a partida, modificando a dinâmica do jogo.”

Rolf Stämpfli: “Onde começa a incerteza? Quão precisa é a linha do gol? Pelas regras, a bola deve ultrapassar totalmente a linha ou o seu plano vertical, mas as traves são realmente verticais?”

Collins propõe uma solução alternativa: após um lance polêmico, o jogo prosseguiria enquanto outro juiz avaliaria muito rapidamente as imagens. Caso a decisão do árbitro principal estivesse errada, bastaria voltar a jogada. “Além de ser muito mais barato que o sistema adotado, esse procedimento poderia ser utilizado para avaliar lances de impedimentos e faltas, que são problemas muito mais constantes no futebol e para os quais não há nenhuma tecnologia à vista”, avalia.

O sistema também enfrenta oposição dentro do próprio mundo da bola, como a do presidente da União das Federações Europeias de Futebol (Uefa), o francês Michel Platini. Ele se preocupa, em especial, com o custo adicional representado pelo equipamento. Segundo o francês, só a sua implementação nos estádios europeus custaria cerca de 50 milhões de euros (150 milhões de reais), além de outros milhares de euros por temporada, para manutenção.

No futebol e além 

Independentemente da técnica, o comentarista esportivo José Ilan, da Fox Sport, defende o uso da tecnologia no futebol em todo tipo de lance polêmico, desde que não seja preciso paralisar o jogo. Para ele, a Fifa percebeu que está cercada pela tecnologia e que isso torna os erros cada vez mais gritantes. “Como defensora do jogo limpo, ela precisa adotar medidas que tornem o esporte o mais justo possível”, diz. “Alguns defendem que os erros dão graça ao futebol, alimentam conversas e brincadeiras, mas acho que a graça dele é ser imprevisível, o que vai continuar sendo sem os erros.”

Reclamação com o juiz
Nova tecnologia pode aliviar pressão sobre os juízes em lances polêmicos de gol. Relógio especial no pulso vai confirmar, em segundos, se a bola entrou ou não. (foto: Flickr/ joncandy – CC BY-SA 2.0)

Fleming defende que essa tecnologia seja usada para tratar da incerteza na ciência e lembra que a importância de prezar pela honestidade das medições vai bem além do futebol. “Uma vez que a importância da opinião pública é cada vez maior na tomada de decisões sobre temas como mudanças climáticas, energia nuclear e modificações genéticas, é preciso ampliar a consciência da sociedade sobre questões como incerteza e probabilidade”, pondera.

Para ele, com imagens geradas no computador cada vez mais reais, será necessária muita transparência nas representações visuais para manter sua credibilidade e tornar possível distinguir replays e reconstruções – a começar pela tecnologia da linha do gol. “O futebol é apenas um jogo, mas é um bom lugar para começar”, completa.   

 

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line