Pacientes rebeldes

 

O número de pacientes que deixam de tomar a medicação e de seguir as orientações do psiquiatra após um ano de tratamento chega a 50%.

A medicina tem enfrentado um sério obstáculo: a falta de adesão de pacientes a prescrições médicas. No caso da psiquiatria, o problema é maior, já que a sociedade criou uma cultura de estigma em relação ao doente psiquiátrico. Assim, poucos aceitam diagnósticos como ‘transtorno de personalidade estriônico’, ‘transtorno obsessivo compulsivo’, ‘síndrome do pânico’ e, principalmente, ‘esquizofrenia’. Tentativas de solução para esse impasse foram discutidas no simpósio ‘Novos desafios no tratamento da esquizofrenia’, durante o 24º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em Curitiba (Paraná) entre os dias 25 e 28 de outubro.

A esquizofrenia é uma doença psiquiátrica cujos sintomas variam de delírios de perseguição e alucinação até pensamentos desconexos, fobia social e descontrole psicomotor. Os sintomas podem ser causados por desequilíbrios de substâncias neuroquímicas no cérebro, como dopamina, serotonina e noradrenalina. É raro o aparecimento dos sintomas na infância ou após os 25 anos.

A falta de adesão a tratamentos tem sido o maior problema enfrentado pelos médicos ao buscar meios de recuperar portadores da doença. Segundo Helio Elkis, chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), 50% dos pacientes deixam de tomar a medicação e de seguir as orientações do psiquiatra após um ano de tratamento. Após dois anos, esse número sobe para 75%. Ainda segundo Elkis, o esquizofrênico é um indivíduo estigmatizado na sociedade, e o fato de ser taxado de “louco” contribui fortemente para a falta de adesão ao tratamento, como revelaram estudos feitos no Instituto de Psiquiatria da USP.

Outros fatores que colaboram para que o paciente desista do tratamento são os efeitos colaterais dos remédios, falta de apoio familiar, negação da doença, crença de que a medicação não é necessária e até esquecimento. Elkis aponta como possíveis soluções para a problema o emprego de técnicas psicoeducacionais que envolvam o paciente e a família, e a monoterapia. “Sugiro o princípio de Gattaz: ‘monoteísmo, monogamia e monoterapia’”, brincou o psiquiatra, citando seu colega da FMUSP, Wagner Gattaz, que coordenou o simpósio. Ambos defendem que o ‘abuso’ de substâncias receitadas pelos médicos é outro fator que pode levar à falta de adesão ao tratamento, pois intensificam os efeitos colaterais e um descontentamento cada vez maior do paciente.

Em busca da recuperação
Para Mario Louzã, do Instituto de Psiquiatria da FMUSP, a solução para a falta de adesão e para a eficácia do tratamento poderia estar, primeiro, na definição clara de recuperação, hoje vista como a remissão dos sintomas (melhora sintomática, conhecida como ‘resposta’, acrescida de uma melhora funcional) somada à retomada da interação psicossocial e vocacional. Tal conceito, na visão de Louzã, é hoje difícil de formar, diante da falta de perspectivas de recuperação completa da esquizofrenia. Louzã considera a remissão “não muito realista” no contexto da esquizofrenia, já que, para ser entendida como tal, a remissão deve ser constante, isto é, não admite recaídas em surtos agudos. Para atingir o patamar ‘remissão + recuperação’, Louzã propõe a realização de tratamentos precoces. No caso de níveis mais graves da doença ou de diagnósticos tardios, ele propõe tratamento multidisciplinar, contínuo, abrangente e integrado, com diversas abordagens.

Da esquerda para a direita: José Manuel Olivares, Wagner Gattaz, Mario Louzã e Helio Elkis, durante o 24º Congresso Brasileiro de Psiquiatria. (Foto André Marques)

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O psiquiatra José Manuel Olivares, do Serviço de Psiquiatria do Complexo Hospitalar de Vigo, na Espanha, abriu sua apresentação com uma pergunta: “Nós [psiquiatras] estamos levando esses dados a sério?”. Ele se referia à falta de adesão e à perspectiva de que 80% dos esquizofrênicos não estão aptos a recuperar suas atividades psicossociais anteriores (que, segundo ele, já não eram boas) depois do tratamento. Após essa consideração, Olivares falou sobre os testes que ele e sua equipe vêm fazendo com a droga Risperdal Consta, que tem o mesmo princípio ativo (risperidona) da droga comumente usada, o Risperdal. A diferença é que este último é tomado em pílulas diariamente, e o primeiro é injetado intramuscularmente a cada duas semanas. Segundo o médico, trata-se de um fator que reduz o estigma, já que o paciente não precisa tomar um antipsicótico todos os dias. O estudo prosseguirá e, segundo o médico, é um projeto “ousado”, que terá a participação de mais de 16 mil pacientes. O comum nesse tipo de pesquisa é testar cerca de 2 mil pacientes. Mais informações sobre o uso de Risperdal Consta pela equipe de Olivares estão no site www.risperdalconsta.com .

Um ponto de vista parece ser consensual: a medicação é estritamente necessária, e é melhor que seja única para evitar aumento dos efeitos colaterais. Segundo Gattaz, não vale a pena economizar em medicamentos, já que eles perfazem cerca de 13% dos custos com saúde. “Evitar recaídas significa evitar despesas”, completou. Evitam-se recaídas quando se toma a medicação corretamente e as orientações médicas são seguidas à risca. A ausência de recaídas, além de evitar custos, indica que o paciente está respondendo ao tratamento medicamentoso e se aproximando da remissão dos sintomas e da recuperação.

André Marques
Especial para Ciência Hoje On-line
09/11/2006